Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A vida é porosa

O Brasil é um país singular onde músicos que vivem da liberdade de expressão e de informação atuam politicamente contra a liberdade de expressão e de informação alheia. Situação análoga, forçoso dizer, à de jornalistas que buscam restringir a prática da profissão aos possuidores de diploma em um curso universitário de Jornalismo.

Os artigos 20 e 21 do Código Civil estabelecem estar a publicação de biografias sujeita à autorização do personagem ou de seus herdeiros. A Associação Nacional dos Editores de Livros entendeu que tais artigos se chocam com a liberdade de expressão, que “é livre ou independe de censura ou licença”. Projetos que eliminariam a distorção patinam no Congresso. A Anel entrou com ação direta de inconstitucionalidade no STF.

Como a lei está, todos os perfis e biografias à venda no Brasil são “autorizados”, independentemente de leitura prévia ou autorização formal. Isso não os invalida, claro, mas restringe a oferta ao leitor. O Procure Saber se mobilizou para manter os artigos e propor uma emenda que preveja participação financeira na venda das biografias. No discurso do grupo, abundam as palavras “fortuna”, “fofoca” e “intimidade”. A primeira diz mais sobre a realidade desses músicos do que sobre a dos biógrafos. A segunda, se for calúnia, deve levar ao processo e eventual condenação do autor mentiroso.

Na terceira é que está o busílis. Ninguém nega que vidas de pessoas públicas têm uma dimensão íntima. Não há, entretanto, consenso possível sobre onde ela está. Em abril, Roberto Carlos tentou proibir “Jovem Guarda: moda, música e juventude”, de Maíra Zimmermann. Difícil imaginar no que o livro invadiria sua privacidade.

Há um argumento recorrente no surto censório do Procure Saber. Ele já estava presente no acordo judicial entre a editora Planeta e o mesmo Roberto, em 2007, quando “Roberto Carlos em detalhes”, de Paulo Cesar de Araújo, foi retirado de circulação. Em termos simples, o argumento é “minha vida me pertence (minha obra é que é pública)”.

Vida e obra

Qual o Procure Saber, que age como se o Código Civil se aplicasse apenas à classe artística, vou passar de passagem pelas implicações dos artigos 20 e 21 para a memória política do país. Personagens de grande intimidade com o dinheiro público nos agradecem. Pronto, passei. Vou me ater, então, a considerações sobre pesquisa musical.

A vida é porosa. Público e privado são categorias que, sobretudo na criação artística, trocam fluidos quase o tempo inteiro. Cabe ao jornalista ou ao biógrafo analisar o tecido, separando o que é significativo para a história particular que quer contar do que é calúnia, maledicência ou mera invasão de privacidade.

Como jornalista há quase 30 anos, não é de hoje que reflito sobre a questão. Como autor de um livro sobre Renato Russo publicado em 2000, que não chega, pelo tamanho e pela ambição, a ser uma biografia, mas sim um perfil, o meu ângulo esteve claro o tempo todo: a vida pessoal de Renato me interessava na medida em que me ajudava a entender sua obra. Outros autores poderão pensar diferentemente. Lembro-me que uma crítica publicada cobrava-me “fatos picantes” e não análise poética.

Por falar em lembrança, nada como um pouco de perspectiva histórica para baixarmos a bola. Os dois exemplos a seguir dizem respeito a compositores estrangeiros há muito falecidos. Se sujeitos ao Código Civil brasileiro, porém, seus herdeiros poderiam enxergar invasão de privacidade ou prejuízo de imagem na sua divulgação.

Um ou dois dias depois de morrer, em dezembro de 1791, Mozart foi enterrado numa vala comum nos arredores de Viena. Ele passara a vida atolado em dívidas. Entre uma composição e outra, escrevia cartas, muitas cartas: humilhantes para os credores, suplicantes para os futuros credores, angustiadas para o pai Leopold, escatológicas para a irmã apelidada Nannerl, pornográficas para a esposa Constanze. Dívidas são problemas particulares, e cartas, naturalmente, são correspondência privada. No entanto, sem elas teríamos menos vislumbres da complexidade do gênio de Mozart.

Em agosto de 1910, Mahler pegou um trem e foi se encontrar com Freud em Leiden, na Holanda, onde o Pai da Psicanálise passava férias. Não se sabe o que conversaram durante as quatro horas de caminhada no dia 26. Sabe-se, contudo, o que levou o compositor até ali: ele descobrira que sua mulher, Alma, estava tendo um caso com o jovem arquiteto Walter Gropius. Mahler tinha outro problema no coração: endocardite infecciosa. Morreria no maio seguinte, aparentemente apaziguado por Freud. Doença, infidelidade e redenção ajudam a compreender a sua Nona Sinfonia.

As relações entre vidas e obras rendem debates sem fim entre estudiosos e fãs. É por isso que a riqueza cultural de um país se faz, entre outras coisas, pela convivência entre autobiografias, biografias autorizadas e biografias não autorizadas. Cabe ao leitor decidir qual ou, ou melhor ainda, quais ler. Tutelá-lo é típico de regimes autoritários.

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Arthur Dapieve é colunista do Globo