Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Globo


POLÍTICA & JORNALISMO
Merval Pereira


Opinião pública x povo


‘Quando o deputado Roberto Brant, em seu discurso de defesa na tribuna da
Câmara, advertiu seus pares para que tivessem cuidado ‘com o monstro da opinião
pública’, e que pensassem ‘apenas no povo’, estava tentando encorajá-los a
arrostar a indignação da sociedade no pressuposto de que a ‘opinião pública’
representa apenas uma parcela de elite da sociedade, e não os cidadãos de
maneira geral. Seu argumento foi vitorioso e tanto ele quanto o deputado
Professor Luizinho não foram cassados por terem utilizado dinheiro de caixa dois
em suas campanhas eleitorais.


Essa é uma discussão muito presente nos dias atuais, quando os meios de
comunicação ganham cada vez mais força na sociedade, refletindo seus pensamentos
ou influenciando-os.


De fato, a ‘opinião pública’ surgiu no fim do século XVIII, através
principalmente da difusão da imprensa, como maneira de as elites se contraporem
à força do Estado absolutista e legitimarem suas reivindicações no campo
político. A existência de uma ‘opinião pública’ está ligada ao surgimento do
Estado moderno, onde as forças da sociedade ganham espaço para suas
reivindicações contra o absolutismo do reinado. Hoje, o sociólogo francês Jean
Baudrillard é um crítico da ‘sociedade do espetáculo’ dominada pelos meios de
comunicação, especialmente a televisão e o noticiário em tempo real da internet,
que substituem ‘o real por signos do real’.


Outro francês, Pierre Bourdieu, debruça-se sobre as pesquisas de opinião em
um livro sintomaticamente intitulado ‘A opinião pública não existe’. Ele critica
a pressuposição de que todas as pessoas têm uma opinião sobre as coisas, de que
todas as opiniões têm o mesmo peso e, sobretudo, que exista um consenso sobre a
pergunta certa a ser feita aos pesquisados. Bourdieu acha, em suma, que a
pesquisa de opinião virou um artefato político. Segundo ele, o que existe é uma
opinião ‘mobilizada’, a das elites e dos grupos de pressão.


O cientista político Marcus Figueiredo, diretor do Doxa (opinião em grego) –
Laboratório de Pesquisas em Comunicação Política e Opinião Pública do Iuperj –
ressalta que o que se define por opinião pública não representa necessariamente
a visão de uma elite, mas reflete sempre um sentimento presente, em maior ou
menor grau, na sociedade. Mas Figueiredo acha que o deputado Brant tem razão,
nem sempre a opinião pública representa o pensamento majoritário no povo, mas
ela pode fazer com que o povo mude de idéia.


Ele observa, por exemplo, que a mudança de avaliação do eleitorado em relação
a Lula não saiu do nada, está baseada em alguns fatos concretos: o fim do ano
amenizou o noticiário, as notícias econômicas estão boas e o governo se
aproveitou das circunstâncias para vender bem sua imagem. Mas a situação pode
mudar com a campanha eleitoral, lembra ele, que não aceita a tese de que o povo
brasileiro tem memória curta. É preciso saber, porém, usar as denúncias que, se
forem requentadas, podem surtir efeito contrário. O eleitor poderá raciocinar
‘isso é campanha política, onde todo mundo ataca todo mundo’.


Além do mais, ressalta Figueiredo, não há nada que ligue diretamente Lula aos
acontecimentos, e ele conseguiu convencer que não sabia de nada. Mas os
deputados que acham que o povo tem memória curta podem ser punidos nas urnas,
afirma Figueiredo, lembrando que há inúmeros casos em que essa punição veio,
sendo o mais famoso deles o do ex-presidente Collor, que não conseguiu ainda
voltar à vida pública, nem mesmo em Alagoas.


O deputado Chico Alencar, do PSOL, que é membro do Conselho de Ética da
Câmara, reage ao conceito elitista, enfatizando que numa sociedade de massas não
é possível desprezar a opinião pública, ‘senso comum formado por um conjunto
variado de vetores, e que a grande mídia, por mais interesses particulares que
expresse, sempre abriga’. Contribuir para formar a opinião pública, disputá-la,
é uma coisa, não considerá-la é outra, ressalta Alencar.


O perigo que existe nesse acordão que está se desenhando no Congresso é, como
define o cientista político Marcus Figueiredo, que o sentimento de apartamento
da sociedade em relação à política gere uma apatia. ‘Isso é coisa de político,
não me afeta’ seria uma maneira de reagir a esse tipo de tramóia política. Esse
pensamento do eleitor pode gerar tanto a apatia quanto uma revolta que
desemboque em um movimento de voto nulo, por exemplo. Ou, em hipótese otimista,
na não eleição dos deputados envolvidos no esquema de corrupção.


Para tanto, porém, seria preciso uma movimentação de grupos de pressão em
diversos estados para rememorar no eleitorado local cada um dos mensaleiros.
Esse monopólio da política pelos profissionais da política é outra distorção
denunciada pelo sociólogo Pierre Bourdieu, que considera artificial o modo de
pensar exigido para os querem participar do mundo político. É preciso dominar
certos códigos próprios, se submeter ‘aos valores, às hierarquias e às censuras
inerentes a esse campo ou à forma específica que suas obrigações e seus
controles revestem no seio de cada partido’, lamenta Bourdieu. Há entre os
políticos ‘um contrato tácito’ que implica reconhecer esse jogo ‘pelo próprio
fato de que vale a pena ser jogado’.


Por isso, Bourdieu considera a representação política uma luta, com regras
próprias, pela conquista de poderes, o que alijaria do jogo o cidadão comum.
Sexta-feira terminei a coluna com uma frase do diplomata francês Tayllerand que
dizia que, na política, a única obrigação é vencer. Mas é preciso lembrar que
existem as vitórias de Pirro, que levam a derrotas. Esse acordão no Congresso
pode ser uma delas para a classe política como um todo.’


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