Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Especialistas?

O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) escreveu que o intelectual relevante da atualidade, aquele que luta por questões que valem a pena, não tem mais o perfil de um Voltaire, por exemplo. É mais como Oppenheimer: sua força deriva de um conhecimento específico. Claro, não basta que ele seja um especialista: é preciso que coloque seu prestígio a serviço de uma grande causa. Apesar de algum embaralhamento ideológico, penso que ainda sabemos o que é uma grande causa.

Esse tema me vem à cabeça frequentemente, diante de um fenômeno que se repete nos jornais, na TV, nas mídias, enfim. Falo de reportagens em que o jornalista ouve especialistas. Minha reação é mais forte quando se trata de duas questões. Em uma delas, economia, sou completo amador. Mas, mesmo assim, sei que há várias tendências ou escolas, que governos diferentes praticam políticas econômicas diferentes etc.

Então, dou-me conta, porque para isso não é preciso saber muita coisa, de que os especialistas ouvidos são sempre da mesma escola. E repetem sempre os mesmos argumentos e dados, mesmo quando estes são desmentidos pelo noticiário. Atualmente, no Brasil, os ‘especialistas’ estão claramente engajados em políticas de contenção de gastos por parte do governo. Como se não houvesse economistas que pensam diferentemente. Ouve-se uma verdadeira ladainha.

Já no outro campo não me considero amador (completo): trata-se de questões de língua, de gramática, de escrita, de ensino de escrita, da história de como foram tratados e como se tratam os textos editados.

Nesse caso, fico ainda mais espantado do que quando ouço especialistas em economia. Aqui, ocorre um fenômeno curioso: para a mídia diária, quanto menos o especialista conhece, quanto mais restrita é sua biblioteca, mais especialista ele é. E quanto mais restrita a biblioteca, maior o grau de certeza do especialista. O especialista é o que confirma o jornalista.

Distorções

A questão ficou clara, nos últimos anos, em dois episódios. Um foi o do famoso livro do MEC que incluía um caso de variação linguística e uma sugestão para seu tratamento didático. Ouviu-se falar muito “do livro que ensina errado”, “que o erro não é errado”, “que o certo agora é errado” – uma sucessão incrível de provas de incapacidade de compreender uma questão elementar, sempre revelando ausência de conhecimento de uma bibliografia mínima, apesar de a disponível ser numerosa.

O outro episódio tem relação com as orientações do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) para a correção das redações do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Como sabe quem leu jornais ou viu o documento oficial (vou simplificar, para me ater à questão que se tornou a única a ser discutida), os corretores são orientados a não tirar pontos quando se defrontam com certos tipos de erros de grafia e gramática nas redações. O ‘manual’ diz que “desvios gramaticais ou de convenções da escrita serão aceitos somente como excepcionalidade e quando não caracterizem reincidência”.

Isso quer dizer que apenas redações com determinados tipos de erros não terão necessariamente pontuação diminuída nesse item. O texto não diz para o corretor fechar os olhos a qualquer tipo e quantidade de ‘desvios’. Mas o leitor pode adivinhar como certos especialistas leram isso.

Jornais publicaram recentemente um exemplo de redação com nota máxima no item relativo ao domínio da modalidade escrita formal, apesar de conter um erro de acentuação. Há algum tempo publicaram, com críticas duras e sem fundamento especializado, exemplos de redações que não perderam pontos apesar de desvios de grafias como ‘trousse’.

Questão ideológica

A questão que interessa aqui é a posição dos especialistas. Vale a pena perguntar o que é um especialista em questões como essa. É um jornalista ou professor que escreveu um manual simplificado, com as questões mais comuns do dia a dia de uma redação de jornal, por exemplo, para socorrer redatores com pouco tempo e parca especialização? É um professor de cursinho que nunca participou de uma pesquisa e que aplica cegamente as regras de escrita?

Ou é um estudioso da língua em suas múltiplas variedades – entre as quais a relação entre sons e letras, o limite frequentemente obscuro entre as palavras, vasculhando documentos de história da escrita, verificando o funcionamento das editoras (com seus revisores) e, especialmente, a natureza dos erros escolares, ou seja, típicos de quem ainda está em processo de aprendizagem, de quem não é profissional da escrita, muito menos de revisão – que mesmo os profissionais não dispensam?

Os especialistas ouvidos nessas ocasiões são sempre os mesmos. Sua trajetória é frequentemente marginal na comunidade dos estudiosos da língua quando se trata de questões como essa (seria como chamar um contador para discutir política econômica). No entanto, por razões mais ideológicas do que de conhecimento especializado, são sempre eles – e apenas eles – os ouvidos.

Um dos principais sintomas de que estamos diante de uma questão ideológica é que os especialistas tratam o que consideram liberalidade em relação à variação linguística como se fosse uma posição de esquerda. Ora, isso revela insuficiência de leitura. Acaso Labov [William Labov, linguista norte-americano considerado fundador da sociolinguística variacionista] é de esquerda?

Também se tem dito que as diretrizes do Inep são demagógicas. Mas por que seria demagogia dar ao texto do estudante um tratamento análogo ao que as editoras dão ao dos escritores, que elas revisam e cujos ‘desvios’ são obviamente desconsiderados?

Outro sintoma de precária especialização é que eles imaginam que essa política de correção está ligada ao governo do PT, ou de esquerda. Ora, essa concepção de escrita e avaliação, que deriva de pesquisas universitárias do mundo todo, foi adotada pelosParâmetros Curriculares Nacionais e pelo Exame Nacional de Cursos (Provão), que, como todos deveriam saber, foram já políticas de governos anteriores, propostas por especialistas bem mais especializados.

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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas