Uma das perguntas mais recorrentes em encontros literários é sobre as leituras dos escritores: o que leram e o que estão lendo. Essa curiosidade guarda um lado formativo, pois quem admira aquele autor vai tentar ler algumas de suas referências. Mas tem também um lado bisbilhoteiro, revelando um desejo de entrar na intimidade de alguém com uma mínima notoriedade. Como tudo nessa era de contaminações, não dá para delimitar as fronteiras entre esses sentimentos.
É fato que leitores querem orientações num campo literário confuso, mas talvez desejem antes confirmar preferências já calcificadas. E resta a quem escreve, e se expõe em encontros e entrevistas, desfiar um rosário de obras e autores.
Um escritor para quem a literatura é o centro – há muitos oriundos de outras áreas de interesse – será sempre um leitor. Então, mais importante do que revelar o catálogo de sua biblioteca afetiva talvez seja entender a natureza de suas leituras, que podem ser divididas em quatro grupos.
Caixa de ferramentas
Um escritor lê alguns livros não porque aprecie o autor ou a obra em particular. E sim para aprender a escrever, para internalizar estruturas, para adquirir um conhecimento técnico sobre algum aspecto. Num período em que prevalece a ditadura do entretenimento, o autor sério não pode deixar de se apropriar de ferramentas que permitam um trânsito mais contemporâneo. Ao escrever meu romance “A Primeira Mulher” (Record, 2008), eu queria incorporar um ritmo veloz à narrativa, impondo a um enredo policial os móveis da literatura propriamente dita. Nunca me interessei por romances policiais, nem pelos clássicos do gênero, mas fiz um regime de leituras nessa linha para conquistar alguma intimidade com eles. Passado esse período de laboratório, nunca mais voltei a essa forma de narrativa, o que mostra que era algo absolutamente não essencial para mim.
Um escritor se dedica a obras que servem mais como meros exercícios. Foi assim que li as ficções de Lydia Davis (“Tipos de Perturbação”, trad.: Branca Vianna, Companhia das Letras, 2012), um verdadeiro mostruário de possibilidades construtivas, do conto brevíssimo ao uso de um discurso próprio de tese para contar uma história. Seus relatos não me tocaram, mas serviram para eu refletir sobre o fazer literário em uma época em que há tantos gêneros textuais em circulação social.
Embora com verdadeiro valor literário, o romance “A Passagem Cruel do Tempo” (trad.: Fernanda Abreu, Intrínseca, 2011), de Jennifer Egan, teve também uma função expositiva quanto a uma estrutura romanesca atual, com uma simultaneidade de vozes e trajetórias que oscilam no tempo e no espaço. O ápice da experimentação é um capítulo narrado por uma criança em linguagem de PowerPoint, numa alegoria à rudimentaridade de expressão nas novas gerações que tem como consequência uma falência ética generalizada.
A literatura não reside nesses recursos, mas verificar de que forma se pode fazer uso deles para obter um melhor resultado plástico para a experiência emocional (centro de toda arte) é uma necessidade de qualquer criador consciente de seu trabalho.
O colecionador
O segundo tipo de leitura é o de natureza informativa. Dentro do processo realista de produção e recepção, preponderante na modernidade, é necessário trabalhar com documentos, para dotar a escrita criativa de sinais de verossimilhança, mesmo que seja para negar o real. Qualquer um que tenha escrito uma ficção histórica sabe que é preciso consultar documentos, livros, jornais, teses de doutorado etc. para situar a história em outros tempos. Mesmo livros sobre a vida contemporânea exigem leituras específicas sobre lugares, hábitos, objetos…
Assim, parte do tempo do escritor é dedicada a esse material vazado em uma linguagem endurecida, sem a menor preocupação literária ou com um estilo literariamente caricaturesco. Nesse terreno, é preciso ficar atento para não incorporar vícios narrativos, principalmente quando o escritor se dedica a outras épocas. Interessam-lhe apenas os dados contidos nesses materiais, a linguagem será toda dele na hora de construir o seu livro.
Leitura para viagens
O escritor, cada vez mais, não vive isolado em seu escritório, com uma parede forrada de obras clássicas que o protege dos ruídos incômodos do mundo. É um oficial no meio de outros oficiais. Participa de feiras, convive com colegas de trabalho, entra em debates com os produtores contemporâneos. Esse seu relacionamento com os pares gera uma obrigação de diálogo literário. Acumulam-se, assim, os livros de produtores contemporâneos que o escritor recebe, mesmo quando ele não faz resenha, mas muitos fazem esse tipo de trabalho.
A maioria desses títulos não guarda o menor interesse para o escritor. Ele poderia passar muito bem sem eles, usando seu tempo para outros saques no inesgotável estoque da grande literatura universal. Mas é preciso dispor de um tempo para acompanhar, minimamente, o que é produzido pelos companheiros de viagem. Você terá que comentar ao menos um conto do autor na próxima conversa com ele. Dalton Trevisan relatou que, ao visitar Guimarães Rosa, este havia lido um de seus contos e centrou todos os comentários em torno daquele fragmento. Não se trata apenas de cálculo diplomático, mas de um respeito mínimo aos profissionais com quem se convive. E essa prática tem uma função importante, pois mostra ao escritor para onde está indo (ou de onde está voltando) a produção da agoridade.
Ler para ler-se
Por fim, um escritor precisa criar largos espaços para se dedicar aos livros que realmente importam, aqueles que foram produzidos pelos seus irmãos de alma, pelos seus iguais em alguma preferência profunda. Nesses autores reside o DNA do escritor, e tais leituras promovem, ao mesmo tempo, o conhecimento de um outro (que poderia ser quem somos, e o é pelo mecanismo de imaginação) e de nós mesmos. Só é densa uma leitura quando há esse embaralhamento de identidades.
Esses não são autores para ser lidos, mas para ser meditados. Sabemos quais leituras nos marcaram assim tão fundo quando, folheando o livro lido, encontramos os muitos grifos, as anotações. Esses parágrafos destacados são, geralmente, o ponto de contato entre o eu/leitor e o eu/escritor. Embora nascidos de um outro, eles nos pertencem e podem ser acrescentados às nossas opiniões mais particulares sobre as pessoas, as coisas e a arte. Há uma autoria de natureza vertical nessas linhas destacadas. Grifar é uma maneira de tomar posse de áreas dentro de um território coletivo. Aqui é meu domínio, dizem os traços sob as palavras.
Esses são os únicos livros que deveríamos ler, aqueles que nos leem, para usar a fórmula de Murilo Mendes, em um de seus aforismos de “O Discípulo de Emaús”, o de número 463: “A leitura deve nos ler, tanto quanto ser lida”. Desses títulos nossa sensibilidade sai queimada, porque, enquanto as outras modalidades de leitura são sempre frias, algumas até gélidas, essas acontecem em uma temperatura elevada.
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Miguel Sanches Neto é ficcionista, autor, entre outros, dos romances históricos Um Amor Anarquista (Record, 2005) e A Máquina de Madeira (Companhia das Letras, 2012)