A duração de um acontecimento jornalístico pode ser descrita por uma curva com seus picos ascendentes e descendentes. E quando polêmica, a questão costuma ser abordada “monossêmicamente”, isto é, num mesmo plano conceitual. Concentrada no plano jurídico – de onde virá certamente o desfecho – já se enfraqueceu a polêmica sobre liberdade de expressão e direito à privacidade, cujo foco prático é a censura, nos termos do Código Civil, a biografias não autorizadas.
Esta foi a superfície do debate. No fundo mesmo, está o problema do valor – logo, uma questão de natureza ética.
Valor humano, bem entendido. A distinção marxiana entre valor de uso (a utilidade de um bem) e valor de troca (a circulação do bem no mercado) refere-se apenas a objetos. A título de exercício, pode-se indagar, quem sabe, sobre a possibilidade da aplicação desses conceitos a pessoas. O valor de uso de um indivíduo seria, digamos, a sua boa integração (civil, profissional, moral etc.) na cidadania, algo imanente à esfera privada. O valor de troca seria a medida circulatória de sua imagem cidadã, o que implica avaliação ou reconhecimento por parte de outros, os concidadãos, portanto algo basicamente público.
Mas quando se trata de gente, a coisa é mais complexa. Com o indivíduo, o valor é sempre ético e procede do próprio fato da existência: diferentemente do animal, o homem não só vive, mas existe, o que significa paixão pela vida, busca de sentido e ampliação de horizontes existenciais. O conceito de valor liga-se, assim, à complexidade do próprio pensamento, pois aborda a dimensão onde o espírito se movimenta para além do puro instinto de conservação de si mesmo.
Nessa dimensão, o valor individual não é antitético ao de sua imagem pública, circulante na comunidade. Daí, entre os antigos, o acolhimento comunitário da fama, que não seria o brilho superficial, o mero aparecer de alguém, mas o que sempre se escuta de novo em razão da força virtuosa de uma presença. A ética decorre precisamente das decisões que a comunidade toma sobre o valor quando se trata de orientar as relações individuais e coletivas no empenho de produção do real. O valor da imagem é ético quando se define como elemento dinâmico do agir.
Entrave à memória
Ser é então mais do que aparecer, o sujeito é falado porque é famoso.
Ora, esse tipo de valor não pode ser conhecido de forma instrumental, a menos que o reduzamos, como se fosse um objeto, a “valor de uso” e “valor de troca”. Na sociedade contemporânea, onde as relações sociais tendem a reger-se por imagens midiáticas (imprensa escrita, televisão, internet) – portanto, por uma “comunidade” segunda, a reboque da tecnologia e do mercado – a imagem de um indivíduo agrega valor econômico na medida de seu incremento técnico: amplitude do espelhamento e da atenção pública.
Aparecer é então mais do que ser, o sujeito é famoso porque é falado.
É isto o que leva um artista – um cantor, por exemplo – a ganhar mais do que outro num mesmo espetáculo. A despeito da virtude individual, a sua “mais-valia” decorre de um “mais-falar” que não lhe pertence, porque é social. Noutro plano, uma personalidade qualquer ingressa na história global porque é conotada como de relevância pública pelo “mais-falar” do espírito comum.
O que estamos querendo dizer é que direito à privacidade não é o mesmo que propriedade privada da imagem. Ninguém é dono de sua própria imagem, porque esta é pública, assim como ninguém é dono de seu próprio discurso uma vez proferido e repercutido no espaço público. O que há na sociedade liberal, isto sim, é o direito de proteção da imagem própria em caso de dano público por calúnia, injúria e difamação. Isto não é preceito de nenhuma utopia normativa, mas da própria economia de mercado, que se alimenta historicamente da irrestrita liberdade de expressão.
Aparentemente, quanto maior é a relevância histórica ou político-social de uma personalidade, menor é a importância que assumem os seus excêntricos detalhes privados. Por exemplo, ficamos sabendo por uma biografia que tal personagem tornou-se marquês porque fazia em D. João VI… Exatamente o quê!? Ou, então, acompanhamos as errâncias de D. Pedro I nos bastidores de ruas e becos do Rio; as galinhagens daquele presidente muito simpático etc. Algo internacional? As revelações de um guarda-costas (em biografia que não teve maior êxito) sobre as esquisitices sexuais do presidente John Kennedy.
Nada disso turva a imagem lembrada de tais personalidades, precisamente porque têm relevo histórico. Os detalhes pitorescos pertencem à dimensão folhetinesca de suas narrativas, já que são também personagens. Folhetim, como se sabe, mobiliza olhares e depois se esquece. Alguém ainda tem na memória o enredo do charuto de Bill Clinton?
Desse calibre podem ser as ambiguidades da fama e da liberdade de expressão. As grandes personalidades, ou suas famílias, bem que poderiam tentar controlar a reprodução de suas imagens. Em geral, não o fazem, talvez porque, na medida do valor de troca, seus detalhes privados não valham grande coisa. Ou talvez não lhes faça bem à imagem a paralisia da história.
Família, aliás, costuma ser o maior entrave à celebração da memória dos ilustres: por cobiça, mesquinharia ou secreto rancor, os parentes não raro fazem tudo para enterrar mais fundo o defunto.
Passo em falso
Mas a condição atual do homem pode ser definida pela sua existência no espelho da mídia. Existir é reconhecer-se no espelho, não do Outro, mas do valor de troca de si mesmo enquanto objeto no mercado da celebridade. Quando se prolongam ou se eternizam os quinze minutos de fama de que falava Andy Warhol, o espelho é um sol que deixa o si mesmo cego para o comum. Supondo-se, assim, dono da imagem própria e, suspeitando de que não tenha espessura político-social, teme que possa vir à luz sobre si mesmo apenas o folhetim de suas peripécias privadas.
Por isso, pode ser civicamente educativa uma biografia não autorizada, ou seja, a voz do Outro. É possível que aqueles que a ministra da Cultura sintetizou como “cantores” ainda não tenham chegado à plena consciência da importância – eventualmente, apesar de si mesmos – que tiveram como entonações públicas durante o silêncio horripilante imposto pela censura militar. Têm toda razão em repudiar o assédio físico dos paparazzi e o gosto da mídia por fofocas. E têm agora uma boa oportunidade para deflagrar uma campanha por mecanismos judiciais mais eficazes e rápidos em caso de dano moral. Censura, não: só o risco dos textos sinceros lhes dará a medida de sua historicidade.
Ou não…
No terreno estrito e estreito do jurídico, esse homem público (mas também publicitário), temeroso dos detalhes privados, vive na expectativa de um direito à mordaça do outro. Ainda mais, quando trafega com muita fama na esfera do espetáculo que, para as massas, é hoje o sublime. Só que, em termos éticos, pode estar dando um passo em falso. E “do sublime ao ridículo”, diz-se que disse Napoleão, “é apenas um passo”.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro