Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O anjo torto

Bem que 2013 podia ter sido o ano de Garrincha. Ele morreu 30 anos atrás, em 1983. Se tivesse vivo, completaria agora 90 anos de idade. O vácuo o transformou numa frágil memória, que se vai decompondo rapidamente. Há poucos filmes sobre a sua atuação. Mesmo o documentário feito sobre ele, pobre em imagens, é fraco em conteúdo. Veem-se alguns momentos do gênio do futebol. E depois disso é só repetir as mesmas cenas. Elas não permitirão ter a mais pálida ideia do que ele foi.

Seu nome voltou à pauta por causa dos ataques de Maradona a Pelé. O craque argentino acusa o brasileiro de não ter ajudado o colega, mesmo quando solicitado a dar uma mãozinha. Pode ser. Mas é agora detalhe irrelevante. Mesmo que Pelé tivesse feito por Garrincha o que Maradona cobra tardiamente, não teria impedido o desfecho trágico. Mané Garrincha era um desajustado ao seu tempo. Genial, puro, lindo, poético. Mas sem condições de resolver seu choque com e a realidade a autodestruição que dessa inaptidão decorreu.

Sua história foi contada com maestria por Ruy Castro na biografia que a Companhia das Letras recolocou no mercado, depois de molhar as mãos dos herdeiros para vencer sua resistência ao livro. Talvez até sem ler o livro, as filhas encasquetaram porque a reconstituição da vida de Garrincha era correta. Ou seja: a revelação das suas fraquezas e misérias, não apenas seu inigualável talento para o futebol, sua condição de jogador único dentro das quatro linhas do campo em todos os tempos.

À moda de Chaplin

É uma felicidade dispor de biógrafos como Ruy e um número crescente de outros que se lançam sobre vidas ainda ardentes e polêmicas. Não se pode inibir, tolher ou matar essa tendência com os anátemas de Torquemadas como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil, que querem ser donos plenipotenciários das suas trajetórias. Como é bom degustar biografias bem escritas, bem apuradas e centradas no rigor e na ética, assim como apreciar memórias, ainda que prejudicadas pela vaidade dos seus autores, como a de Afonso Arinos de Melo Franco.

No caso de Garrincha, porém, o melhor foi o privilégio de tê-lo visto em ação. Quem não viu jamais verá de novo nada sequer parecido. Ou alguém já viu um estádio inteiro, duas torcidas unidas a rir, uma em gozo pelo benefício das jogadas e outra em autoflagelação por sofrer os dribles de Garrincha, que desarmavam defesas e desmontavam defensores em improvisos à maneira de Charles Chaplin?

Mané Garrincha merecia ter 2013 a serviço da sua memória. E a memória devia ser mais respeitada no Brasil.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)