No Brasil, a vida privada ocupa ainda hoje o papel de nossa principal referência. A interpretação mais frequente desse fenômeno aposta na ideia de que a ancoragem no privado é sinal de maturidade democrática. O suposto é que essa expansão democrática se sustenta em direitos e, uma vez que os direitos são respeitados, não há motivo para maior preocupação.
Tal abordagem converge com o fortalecimento da ideia do indivíduo como personagem de si mesmo e tem sido recorrente para explicar tanto a importância que atribuímos a certa escrita autorreferencial quanto para sustentar o argumento de que só quem viu, sentiu e experimentou pode registrar a verdade dos fatos vividos.
Visto pela perspectiva do mundo privado, cada um de nós seria, ao mesmo tempo, autor e editor de uma escrita de si: apenas o indivíduo –e sua memória– seria capaz de ordenar, rearranjar e significar o trajeto de uma vida no suporte de um texto e disso criar uma narrativa; e apenas ele, que conhece a autenticidade de suas ações e emoções, estaria autorizado a expressá-las para si e para os demais.
Contudo entre as quatro paredes da vida privada se perde muito. Refugiados na intimidade, os indivíduos desfrutam o privilégio de ter seu pequeno mundo só para si; mas falta-lhes uma forma específica de convivência que se define pela presença do outro e pela possibilidade de ser confrontado com suas opiniões. E porque lhes falta, acima de tudo, a liberdade do falar uns com os outros e uns contra os outros, uma única versão acaba por servir como padrão de verdade, seja para medir a própria vida, seja para pensar a sociedade ou narrar a história do país.
Foi preciso um jovem modernista, indeciso entre a crítica literária e a historiografia, escrevendo sob o impacto das transformações da Era Vargas, para argumentar que, no Brasil, a complexa rede de relações pessoais e privadas comanda a sociabilidade dos brasileiros na cena pública. Mais do que isso: esse comando não traduz a potencialidade de uma esfera privada bem definida; ao contrário, torna evidente que, entre nós, público e privado nunca existiram plenamente; ou melhor, variam em função da situação, do contexto, do status e até do momento.
Em fins de 1930, esse jovem modernista, Sérgio Buarque de Holanda, então com 28 anos, voltou ao Brasil, depois de uma temporada na Alemanha enviando reportagens para “O Jornal”.
Em Berlim, Sérgio acompanhou a agitação política da República de Weimar e o crescimento do partido nacional-socialista, assistiu sem nenhuma regularidade a aulas de história na universidade, traduziu legendas de filmes para ganhar uns trocados –entre eles “O Anjo Azul”, de Sternberg, com Marlene Dietrich– e caiu na farra. Não se sabe bem como, ainda arrumou tempo para escrever: trouxe, na mala, o esboço de um ensaio intitulado “Teoria da América”, com cerca de 400 páginas manuscritas.
O ensaio sobreviveu, mas alterado pelo impacto da modernização do país nos anos 30, trocou de enfoque e foi publicado como livro, em 1936. “Raízes do Brasil”, o livro, nasceu cercado de mal-entendidos e de muita polêmica e se transformou numa obra decisiva de interpretação histórica e de análise sobre os dilemas irresolutos da formação social brasileira.
Cordialidade
Quase 80 anos depois, “Raízes do Brasil” ainda oferece um instrumental crítico para entender o país. O livro diagnostica na cordialidade o traço definidor da nossa cultura e, no seu agente mais famoso –o homem cordial–, um risco para a construção da vida democrática.
Dominado pelo coração, mobilizado pelo fundo emotivo de seus afetos, o homem cordial é uma anomalia política por sua particular compreensão do mundo público, contaminada, desde o início, pela compulsão que ele sente de estender seus direitos individuais sobre esse mundo, fazendo dele um mero apêndice, o prolongamento de seus interesses particulares e de suas relações pessoais.
Habituado a transpor quase naturalmente a lógica do mundo privado à cena pública, o homem cordial é um personagem inquietante: ele só consegue viver em uma “pólis” caricata, que se coloca a serviço da proteção narcísica dos cidadãos e se mantém desperta por conta do imediatismo emocional de seus membros.
“Raízes do Brasil” traz um alerta contra o apego aos “valores da personalidade” cultivados pelo homem cordial e contra a maneira como esses valores incidem sobre as diversas instâncias do Estado, dos partidos políticos, das instituições do mundo público.
Essa insistência na manutenção de práticas próprias ao privado sobre o que é comum a todos quem sabe signifique dar continuidade a certa forma de sociabilidade da escravidão que sobreviveu alterada no clientelismo rural e resistiu à urbanização, quando a classificação hierárquica manteve-se sustentada por fortes laços pessoais. Seria a cordialidade, talvez, a singularidade da nossa colonização ibérica, marcada por vínculos pessoais, que tornam fluidas delimitações e diferenças entre esferas públicas e privadas de atuação.
Essa fluidez impede ao homem cordial adquirir a necessária condição de abstração para sustentar a ideia de que a democracia não é só um regime político mas uma forma de sociedade, cujo princípio normativo está na noção de que pessoas obrigadas a obedecer às leis devem ter igual direito, a despeito das diferenças entre elas.
A mesma fluidez o impede de aceitar o catálogo republicano das liberdades irredutíveis e o leva a relativizar as diferenças que separam sua cena privada e o mundo público, para assegurar seus interesses particulares, solicitar privilégios e prover a censura.
Biografias
Com tudo isso, Sérgio Buarque talvez se espantasse com a maneira como o homem cordial reapareceu na agenda do dia, disposto a marcar o debate sobre o tema das biografias e a reivindicar para suas demandas e desejos individuais o amparo da lei.
Naturalmente, seus pontos de vista são emanados diretamente do mundo privado: o papel de vítima assumido pelo homem cordial no debate não deixa de ser uma escolha vantajosa. A perpetuação desse papel mantém os termos imaginários de uma injustiça cometida entre indivíduos; já o desejo de compensação, sobretudo monetária, não busca a transformação das condições que produziram o prejuízo, mas a garantia de que ele possa beneficiar-se dessas condições, sempre como vítima.
Com um ponto de vista vindo da privacidade, o homem cordial defende ser mais seguro para todos aceitar a premissa de que existe uma oposição entre o mundo público e a vida privada e que essa oposição equivale à diferença entre o que deve ser conhecido e o que deve ser ocultado. A premissa é mais do que duvidosa.
As duas esferas –o espaço íntimo, o mundo comum– somente podem subsistir sob a forma de coexistência. Mais do que isso: a definição do público e do privado é, na verdade, o desenho de uma fronteira dentro da qual se abrigam, conectam e se desenrolam dimensões diferentes de nossas vidas. Privado e público só se definem um em relação ao outro.
Não é difícil perceber, dentro dessa fronteira, os modos como se flexiona o privado. Historiadoras que somos, vamos a um exemplo retirado da nossa história.
Um rei sabidamente, e até hoje, não tem escapatória: sabe que é sempre, e desde que nasce, figura pública. Seu casamento é um contrato de Estado; sua morte é sempre anunciada por uma nova vida; os filhos são antes de mais nada herdeiros; e seus diários íntimos não passam de peças públicas.
Pedro 2º, por exemplo, ciente de sua condição, guardou para si o que queria preservar e permitiu a exposição, e até utilizou-se dela, quando devia e queria. Ele era visto por todos, todos falavam dele e nem sempre falavam bem. A sátira da época fez de Pedro 2º objeto permanente: suas pernas finas, sua voz estridente, aguda demais para sua altura, maior do que a da média dos brasileiros, tudo foi motivo para chacota de cartunistas como Angelo Agostini.
E o que dizer do chargista Raphael Bordallo Pinheiro? O português, pouco após a espinhosa promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, publicou uma brochura em que ridicularizava a mania de movimento do imperador (que não parava de viajar) e debochava da lei polêmica: “No Razilb, seu rei é tão bom que libertou os filhos na barriga (mas não as mães, que por certo não ficaram nada satisfeitas)”.
Não se trata de apresentar um personagem excepcional; d. Pedro apenas sabia que algumas pessoas –como os monarcas, os artistas, os cientistas, as celebridades, os políticos– têm um pacto com o público. Só é rei quem não perde a realeza; sejam reis monarcas, reis do futebol, reis momos do Carnaval e reis da canção.
Uma biografia é a evidência mais elementar da profunda conexão entre as esferas pública e privada –somente quando estão articuladas essas esferas conseguem compor o tecido de uma vida, tornando-a real para sempre.
Escrever sobre uma vida implica interrogar o que os episódios de um destino pessoal têm a dizer sobre as coisas públicas, sobre o mundo e o tempo em que vivemos. E a tarefa de julgar, dizia Hannah Arendt, não é prerrogativa do biógrafo nem do biografado: é privilégio dos outros. Na composição da biografia cabem os grandes tipos, os homens públicos, as celebridades; cabem igualmente personagens miúdos, quase anônimos. Em todos os casos, porém, não cabe tarefa fácil: é muito difícil reconstituir o tempo que inspirou o gesto.
É preciso calçar os sapatos do morto, na definição preciosa de Evaldo Cabral, para penetrar num tempo que não é o seu, abrir portas que não lhe pertencem, sentir com sentimentos de outras pessoas e tentar compreender a trajetória de uma vida no tempo que lhe foi dado viver; as intervenções que protagonizou no mundo público de sua época com os recursos de que dispunha; a disposição de viver segundo as exigências desse tempo, e não de acordo com as exigências do nosso tempo.
O historiador anda sempre às voltas com a linha difusa entre resgatar a experiência dos que viveram os fatos, reconhecer nessa experiência seu caráter quebradiço e inconcluso, interpelar seu sentido. Por isso, a biografia é um gênero da historiografia e é essencial para compreendermos os brasileiros que fomos e os que deveríamos ou poderíamos ser. Essa história é pública e ao público pertence.
******
Heloisa Starling, 55, é professora titular de história na UFMG; Lilia Moritz Schwarcz, 55, é professora titular de antropologia da USP