Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em favor da liberdade acadêmica

Vetar biografias não autorizadas por herdeiros dos retratados é proibição de múltiplas inconstitucionalidades. Muito além da violação da liberdade de expressão. Fere gravemente a liberdade acadêmica, a liberdade de ensinar e de pesquisar. A Constituição Federal é clara no seu artigo 206. O ensino será ministrado com base na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. Em seu artigo 218, determina que a pesquisa científica e tecnológica é prioritária e é obrigação do Estado incentivá-la.

A posição de alguns artistas de exigir seu consentimento aos livros publicados sobre suas vidas fere gravemente programas e projetos de inúmeros centros, cursos, institutos e faculdades de história. Atinge professores, pesquisadores e historiadores profissionais. E todos os que usam do método histórico para fazer avançar o conhecimento em suas áreas de atuação não históricas.

Não se pode pesquisar a vida das instituições sem conhecer a vida dos que fizeram essas instituições. Não se pode melhor saber do Supremo sem conhecer seus ministros. Sem pesquisar, explicar e aplaudir a coragem cívica de ministros como Adauto Lúcio Cardoso, Evandro Lins e Silva e Aliomar Baleeiro. Teríamos que pedir permissão aos seus herdeiros? E se negassem? Reduzir-se-ia o Brasil?

Boa campanha

Não se pode saber a história da advocacia sem conhecer a vida de Sobral Pinto ou Rui Barbosa. Nem conhecer nosso patrimônio arquitetônico e cultural sem conhecer as vidas de Lúcio Costa, Mário de Andrade ou Aloísio Magalhães. Pesquisar é formar profissionais, investir em instituições, tecnologias, bibliotecas. Custa recursos, talento e sonhos. Quem irá pesquisar se os herdeiros é que vão decidir o destino do trabalho acadêmico? Não devemos transformar nossa história em capitanias hereditárias.

Ensino sem ampla liberdade de pesquisar não é ensino. É doutrinação. Pesquisa sem erros e acertos, debate e experimentação não é pesquisa. É idolatria. Não posso ser professor nem pesquisador – o que a Constituição Federal de 1988 me assegura – se a liberdade de publicar minhas pesquisas, inclusive comercialmente, não me for assegurada.

Defender a privacidade é necessário. Mas quem abre para revistas de celebridades sua casa, seu quarto, sua festa, sua intimidade já fez juridicamente uma opção: abriu mão voluntariamente de um conceito mais amplo de seu direito à privacidade. Assim tem entendido a nossa Justiça. Há consenso em quase todas as democracias. Proibir antes de publicar, jamais. Responsabilizar depois por injúrias, difamações, calúnia e má-fé, sempre. Ser um país democraticamente maduro não é repetir rezas e ladainhas sobre ou privacidade ou liberdade de expressão. É ambos, e o debate é outro.

Primeiro, como criar mecanismos legais que desestimulem a má-fé, a infâmia, a difamação e a injúria? Punir apenas o autor? O editor também, como fazem alguns países? Os financiadores da má-fé também? Segundo, como conquistar uma Justiça ágil e eficaz? A eficácia judiciária é o melhor desestímulo às violações de privacidade. A atual lentidão é seu maior estímulo.

Eis aí, ao lado da defesa da liberdade acadêmica, uma boa campanha para nossos artistas: a exigência de uma Justiça de critérios uniformes, nítidos, fundamentados, e eficazmente responsabilizantes.

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Joaquim Falcão, 70, mestre em direito pela Universidade Harvard e doutor em educação pela Universidade de Genebra, é diretor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro