A capa da Folha de S.Paulo de 30 de outubro de 2013 é um belo exemplo de negação do jornalismo. Ou de antijornalismo. É desonesta. Mais do que isso: é vil. Uma ode ao ato de manipular (ou desinformar). A manchete principal do jornal trata de protestos ocorridos depois do assassinato, pela Polícia Militar, de Douglas Rodrigues. O jovem, de 17 anos, foi assassinado com um tiro no peito durante uma abordagem policial. O crime, ocorrido no último domingo (27 de outubro), aconteceu na zona norte da cidade de São Paulo. Desde então a região foi tomada por manifestações quase diárias.
O jornal paulista trabalha (com afinco) para criminalizar qualquer manifestação popular. Mesmo que para isso seja necessário erradicar qualquer resquício de jornalismo da sua redação. Isso não é de hoje, é claro. Mesmo assim, a capa já citada merece algumas considerações (pois ela me causa repulsa). A principal manchete do diário de 30 de outubro diz o seguinte: “Facção criminosa é suspeita de atuar em protesto em SP“.
Interessado, decido ler a “reportagem” que trataria do assunto veiculado pela manchete. A seguir, o primeiro parágrafo da “matéria” assinada por Rogério Pagnan:
“A polícia investiga a suposta participação de integrantes da facção criminosa PCC na organização dos protestos violentos na zona norte de São Paulo desde a noite de domingo, após a morte de um adolescente pela Polícia Militar.”
Nem que sim, nem que não
Ainda interessado, continuo a leitura (já desconfiando que ficaria deveras decepcionado com o trabalho do meu “colega” de profissão). Apenas no quinto parágrafo temos a “informação” que, em tese, deveria sustentar, dar embasamento à principal manchete do jornal naquele dia e também ao título da matéria de Pagnan (a saber: “Polícia investiga se facção criminosa agiu em protestos”).
O quinto parágrafo diz o seguinte:
“Policiais, funcionários ligados à cúpula da segurança e promotores dizem haver diversos indícios da ação de criminosos ligados ao PCC.”
O parágrafo só diz isso. Aliás, convenhamos, não diz nada. O “repórter”, se tinha essa informação, não achou necessário explicar, ao menos naquele momento, que “indícios” seriam esses.
Continuo a leitura. Na expectativa de que a “informação” que sustentaria manchete, digamos, tão alarmante, ainda estava por vir. Diz o sexto parágrafo:
“O secretário da Segurança, Fernando Grella Vieira, afirmou ontem que as investigações ainda estão em curso. ‘Nós não descartamos nem afirmamos isso ainda. Estamos avaliando’, disse.”
“Nós não descartamos nem afirmamos isso ainda”, teria dito o próprio secretário de Segurança do estado de São Paulo. Se eu sou editor de um jornal e um repórter aparece com uma “matéria” dessas, eu digo: o secretário não diz que sim, nem diz que não. O secretário não disse, em suma, nada. Não tem matéria.
Morte soa natural
No máximo, sendo bastante generoso, até para não constranger muito a “autoridade”, eu colocaria essa fala que não fala nada no fim da reportagem. Contudo, para o padrão jornalístico da Folha, isso não é apenas notícia, mas algo tão relevante que merece ter destaque (vai para a capa do diário). Imagine a cena, caro leitor: um professor propõe que os seus alunos respondam, de forma bem sucinta, a uma simples questão. O professor (ainda no meu exemplo) pergunta aos seus pupilos: o jornal Folha de S.Paulo apoiou (ou não) a ditadura que comandou o Brasil entre 1964 a 1985? Um dos alunos responde: “Eu não descarto nem afirmo isso ainda. Estou avaliando.” O professor lhe dá zero. Não parece justo? O aluno, afinal, não respondeu nada. Não disse bosta nenhuma. Pra quem não sabe a resposta: a Folha apoiou o regime ditatorial com bastante entusiasmo.
Somente após muitas delongas, a partir do sétimo parágrafo, a “reportagem” revela os tais “indícios”:
“Um dos indícios é que a própria região onde houve os atos violentos é um dos principais redutos do PCC para comércio de drogas e armas.”
Obviamente, os funcionários da Folha não são tontos. Eles sabem que com “indícios” tão frágeis como esses é necessário deixá-los para o fim do texto (quando parte dos leitores já terá, inclusive, abandonado a leitura do mesmo). A ideia, afinal, não é fazer uma reportagem, mas um folhetim. Cria-se um ruído. Isso é o mais importante.
Embora a “matéria” trate de manifestações motivadas pelo assassinato de um jovem, o autor do texto fica repetindo o termo “morte” (como se o jovem tivesse morrido em função de uma parada cardíaca ou coisa que o valha). Exemplifico: “Após a morte de um adolescente”; “após a morte de Douglas Rodrigues”. Em nenhum momento o “repórter” Rogério Pagnan escreve a palavra “assassinato” (ou “assassinado”). Repito: em momento algum da “reportagem” ele escreve isso (apenas repete “morte”). Morte soa como algo natural. Inevitável. Não custa lembrar: o jovem de 17 anos foi assassinado a tiros.
Um militar sempre será um militar
Se foi um acidente, como o policial alega, será homicídio culposo (ou seja: sem a intenção de matar). Se foi intencional, será doloso (ou seja: com a intenção de matar). Morrer é uma coisa. Minha mãe, há muitos anos, e uma tia, mais recentemente, morreram de câncer. Isso é morrer. Ser assassinado é outra coisa. Além disso, a “reportagem”, embora trate de protestos motivados pelo assassinato de um jovem, não ouviu nenhum dos manifestantes. Tudo bem. Isso pode até passar. Talvez não fosse o foco dessa “matéria” em especial. O “repórter”, no entanto, decidiu ouvir comerciantes de região. Mas apenas a fala de um deles nos é revelada. A seguir, um trecho para o qual peço uma leitura atenta:
“Entre os comerciantes que dizem que fecharam as portas por ordem dos criminosos, está Walter Criscidane, coronel reformado e ex-comandante do policiamento de choque da PM de São Paulo. ‘Eles vieram de moto, de bicicleta. Diziam fecha, fecha’.”
Dono de um posto de combustível, ele disse que bandidos pegaram gasolina no seu posto no domingo. Na manhã de anteontem, Criscidane disse que ligou ao 190 para informar que haveria protestos violentos. A PM afirma não ter identificado a ligação.
Farei algumas considerações sobre os dois parágrafos anteriores:
a) Os bandidos “pegaram” gasolina? O correto não seria “roubaram” (já que são bandidos)? Ou esses bandidos “compraram” a tal da gasolina? E se a compraram, como saber que se tratavam de bandidos? Se eu sou editor do jornal, ou sei lá, chefe de redação e leio algo assim, digo para o repórter: Olha, dá uma ligada para o dono do posto e checa isso. Veja se ele foi roubado ou se compraram a gasolina etc. Porque pegar, roubar e comprar são, como qualquer pessoa alfabetizada sabe, palavras distintas.
b) Também chama a atenção o fato de que “entre os comerciantes que dizem que fecharam as portas por ordem dos criminosos”, a única fonte usada na “reportagem” tenha sido a de um “coronel reformado e ex-comandante do policiamento de choque da PM de São Paulo”. Alguns dirão: os comerciantes, certamente, tiveram medo de dar os seus nomes. Pode ser. Mas bastava o repórter não revelar as suas fontes (preservando o anonimato das mesmas). Como o fez, aliás, na mesma “matéria” quando escreveu, bem vagamente, que “funcionários ligados à cúpula da segurança e promotores dizem haver diversos indícios da ação de criminosos ligados ao PCC.” Mas vou ser bem legal com o “repórter” e considerar que ele não encontrou nenhuma outra fonte. Que se descabelou todo, mas não achou. E, por isso, decidiu ficar com a palavra do militar “reformado”.
c) Todavia, preciso chamar atenção para outro fato: um militar sempre será um militar. Não falo de questões afetivas (do amor à tropa ou da saudade dos banhos coletivos). Pela lei, a não ser que tenha sido expulso da corporação ou tenha requisitado a sua exoneração (baixa), o militar mantém a sua patente e certos direitos que não são acessíveis a um civil. Ou seja: o militar, mesmo aposentado, está subordinado ao Estatuto dos Militares (Lei 6.880, de 9 de dezembro de 1980).
Repressão violenta
O “repórter” da Folha, provavelmente, não sabe disso. A polícia militar dos estados, como o Artigo 4º da lei em questão nos lembra, é considerada “reserva” das Forças Armadas do Brasil. E o Artigo 8° do mesmo estatuto afirma que essa lei aplica-se, inclusive, aos militares “reformados” (como é o caso do coronel usado como fonte por Rogério Pagnan). E um dos direitos dos militares (mesmo quando estiver inativo) é, por exemplo, o porte de arma (Artigo 50 da mesma lei). Ou seja: o “repórter” se utilizou, do início ao fim da “reportagem”, somente de fontes oficiais (ou algo bem perto disso), visto que o coronel já citado, embora inativo, continua devendo observar a hierarquia e disciplina exigidas pelas Forças Armadas. Nesse contexto, chamar o oficial em questão de “comerciante” exigiria um adendo, uma explicação para o leitor menos atento. Em suma: o único popular ouvido pela “reportagem”, não era bem uma pessoa comum. Uma pessoa comum não tem a prerrogativa, repito, de andar armado (se assim o desejar). Pelas razões já explicitadas, o “repórter” deveria ter lembrado aos seus leitores que o “comerciante” ouvido pela “reportagem” ainda é uma pessoa intimamente ligada ao Estado (sobretudo aos órgãos que foram utilizados como fontes principais para a redação da mesma “matéria”).
A Folha de S.Paulo tem um objetivo claro com “matérias” do tipo: criminalizar protestos (sejam quais forem os seus motivos). Sobretudo quando eles ocorrem nas periferias e favelas de São Paulo e outras cidades. Em 17 de outubro, o jornal O Globo já tinha usado a mesma tática de criminalizar manifestantes. Recomendo leitura de texto sobre o caso da jornalista Sylvia Debossan Moretzsohn (professora da Universidade Federal Fluminense). Ele foi publicado no site Observatório da Imprensa em 22 de outubro (ver aqui).
Qual o objetivo dessa tentativa, reiterada, de criminalizar protestos e movimentos populares? Identifico dois motivos principais: Fazer com que a população deixe de apoiar manifestações. Ou mesmo que se anime a sair de casa. E permitir uma violenta repressão por parte do Estado. Afinal, se alguém morrer, basta lembrar que se tratava de um “criminoso”, “baderneiro”, “vândalo” etc.
Eu me tornaria um vândalo
Ao promover esse tipo de abordagem, parte da mídia age de forma criminosa. Pois coloca em risco a vida de pessoas. O policial brasileiro, como o caso do jovem assassinado recentemente em São Paulo demonstrou mais uma vez, já tem o dedo bastante frouxo. Com medo, ele será ainda mais imprudente. Estimulado pela mídia e por “autoridades”, ele será ainda mais arbitrário.
Por fim: o “repórter” só cita o nome do jovem assassinado no último parágrafo da “reportagem”. Ele não se dispôs a escrever o nome da vítima antes disso. É sintomático. A melhor maneira de justificar o extermínio, o massacre é desumanizando o outro. Ou simplesmente apagando o outro (daí a importância da memória). Eles não são como nós. Não sofrem. Não sangram. Não criam laços. Rogério Pagnan finalmente cita o nome do jovem e, no mesmo parágrafo, ele finaliza o texto da seguinte forma: “A polícia também investiga quem foi ao enterro dele – em sete ônibus.”
Sim. A polícia deve investigar mesmo. Enterro é um ótimo lugar para o “comércio de drogas e armas.” Pense o seguinte, caro leitor: se o Douglas fosse o seu filho, irmão ou amigo e tivesse sido assassinado… Você não estaria puto? Pense um pouco mais: e se você não tivesse sossego da polícia nem mesmo na hora do enterro? Eu não posso falar pelos outros. Mas eu ia me tornar um vândalo. Ao menos por algumas horas.
******
Léo Nogueira é escritor, jornalista e servidor público