A prática do jornalismo em quadrinhos (JHQ), apesar dos seus quase 20 anos – levando em consideração o lançamento de Palestina – Uma Nação Ocupada, de Joe Sacco, em 1996 (originalmente publicada entre 1993 e 1995 em fascículos) –, não é tão comum em revistas e jornais diários. E não o é até por uma questão logística, pois é necessário um tempo maior na hora de “escrever” a reportagem. Mas em tempos de narrativas no formato de arte sequencial (EISNER, 1999), com tom jornalístico que explora a multimidialidade, é notório ressaltar o papel da revista Fórum na (tentativa de) consolidação, em versão impressa, dessa vertente jornalística no Brasil.
Com apuração de Carlos Carlos e ilustrações de Alexandre de Maio, a revista Fórum foi pioneira na proposta de apresentar material jornalístico em quadrinhos. Na verdade, segundo Carlos informou via e-mail, foram eles que idealizaram e apresentaram a ideia à revista. Ao todo foram 11 edições ao longo de 2012 que não fogem do escopo social que é próprio da publicação. A reportagem que abre a série, por exemplo, traz uma entrevista com Renata Nery, integrante de movimentos sociais (Mulp e Terra Livre) e moradora do Jardim Pantanal, no extremo leste de São Paulo – local onde ocorreram remoções e despejos de várias famílias por causa da realização da Copa do Mundo no Brasil em 2014.
Os relatos são sucintos, nada muito extensos, mas precisos no que interessa a uma apuração jornalística. Estão ali presentes, mesclados em imagens e palavras, o lead, o gancho jornalístico e a humanização do relato.
Linguagem
As ilustrações das matérias em quadrinhos da revista Fórum parecem ser feitas a partir de fotos e vídeos – algo muito próximo do que se vê na trilogia francesa O Fotógrafo. Os desenhos lembram fotografias, e há em alguns casos fotos modificadas para que se assemelhem a desenhos. Um exemplo disso é a imagem da terceira página da reportagem “Genocídio das periferias de são Paulo: Na conta de quem?“, na qual aparece a foto “Todos negros”, de Luiz Morier.
Cada matéria é apresentada em quatro páginas, todas elas construídas no que convencionalmente se chama de quadrinho de página inteira (EISNER, 1999). Esta se caracteriza por apresentar a decomposição do episódio ou da ação em segmentos. Nisto, a sequência imagética das histórias em questão não segue a linearidade tradicional dos quadrinhos – quadro a quadro, da esquerda para a direita. Há matérias que seguem esse modelo, mas a maior parte foge disso. Na verdade, grande parte do material é composta basicamente por entrevistas. O timing é diferente de uma grande reportagem ilustrada, como as de Joe Sacco, por exemplo. Há um fluxo de tempo (presente e passado), e os flashbacks e reconstituições são apresentados com requadros, sendo estes utilizados como recurso narrativo (EISNER, 1999).
Um aspecto interessante a se destacar no jornalismo em quadrinhos é, claro, o apelo visual. Lage (2002) explica que a “documentação visual dá a dimensão da reportagem ao acontecimento singular e eventualmente revela focos que escapam a texto” (LAGE, 1998: p.30). No caso da revista Fórum, e mesmo nos livros de Sacco e outros, o eventualmente se torna uma constante – ainda mais quando se leva em consideração a atual sociedade, tão viciada em imagens e que muitas vezes substitui a experiência por uma representação (NEIVA JR., 2006).
Quem se arrisca?
O jornalista José Arbex, no prefácio da obra de Joe Sacco, escreveu para a edição brasileira do livro Palestina: “Um dos grandes méritos de Sacco – e daí o imenso poder de seus quadrinhos – foi o de ter dado visibilidade aos árabes ‘invisíveis’” (ARBEX, 2004, p. 10). Analisando as reportagens de Carlos Carlos e Alexandre de Maio nas páginas da revista Fórum, é possível afirmar que eles seguiram o mesmo caminho do jornalista maltês, ou seja, dedicaram-se em tornar visível o cotidiano esquecido dos excluídos que normalmente não ganham espaço na grande mídia.
Porém, a proposta não teve continuidade em 2013. As edições recentes trazem a última página ilustrada, mas a partir de versos de letras de músicas. O tom social permanece, mas o viés jornalístico e em quadrinhos desapareceu. Claro, pensar o jornalismo em quadrinhos numa revista mensal não é uma mera experiência estética. Está-se diante da junção de linguagens que cria um formato próprio, mas não estanque, e que não necessariamente segue o horário de fechamento (deadline) das redações. Porém, quem hoje se arrisca a encampar semelhante proposta?
A prática do jornalismo em quadrinhos em um veículo mensal pode originar um novo comunicante, pois, como explica Alvaro de Sá (1975), traz “novos conceitos de forma, de relacionamento, de leitura, específicos e que informam a partir de sua própria linguagem, independente de qualquer representação verbal.” Se o futuro é andar para trás mesmo, talvez a linguagem dos quadrinhos unida ao jornalismo possa significar alguns passos em direção a um jornalismo mais interessante, fora do padrão fordista que hoje se vê nas bancas, sites e TVs.
A experiência capitaneada pela revista Fórum abriu espaço para se discutir tal prática em veículos com abrangência maior que os livros-reportagens – que são maioria quando o assunto é jornalismo em quadrinhos. Além disso, possibilita lançar um olhar acadêmico que teorize – ou pelo menos se inicie uma teorização – sobre estas reportagens, cuja característica informativa está inserida em um contexto em que há uma maior fruição comunicacional com a informação através das imagens – neste caso específico, dos quadrinhos.
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Iuri Barbosa Gomes é jornalista e professor, Alto Araguaia, MT