Um dos melhores artigos que já li na área de história foi escrito por Alessandro Portelli e publicado no bom livro Usos & Abusos da História Oral, organizado por Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado, cuja primeira edição saiu pela FGV em 1996. O título do trabalho é ‘O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum’.
No ano de 1944, aquela região italiana estava ocupada por tropas nazistas. Em retaliação pela morte de três soldados alemães por membros da Resistência, mais de duzentos civis de três pequenos povoados, entre eles homens, mulheres e crianças, foram brutalmente assassinados.
Cinqüenta anos depois, Portelli investigou o acontecimento, entrevistou muita gente que testemunhou o fato e boa parte dos habitantes daqueles povoados que, em última análise, culpavam os membros da Resistência pelas mortes dos civis. Notou o autor o deslocamento da responsabilidade ou da culpabilidade na memória de diversos depoentes. Como se as ações dos nazistas fossem previsíveis e inexoráveis. Teriam procedido dentro do que seria ‘natural’ que fizessem.
Máquinas de matar
Logo que comecei a acompanhar na mídia o noticiário a respeito do assassinato dos três rapazes do morro da Providência por um grupo de marginais do morro da Mineira, no Rio, lembrei-me do artigo de Portelli. Não há dúvida de que as responsabilidades indiretas pelos terríveis homicídios devem ser repartidas, solidariamente, entre aqueles 11 militares do Exército, principais alvos das acusações de vizinhos, parentes, polícia, governo estadual, autoridades federais e mídia. O tenente, os sargentos e os soldados já se encontram presos e têm sido amplamente investigados. Permanecem sozinhos no foco geral de responsabilização pelo crime e da expectativa geral por punição.
Nas colunas do jornalismo político, outros responsáveis indiretos têm sido aventados. As responsabilidades têm sido repartidas em todos os níveis decisórios e de comando, civil e militar, sendo a motivação dita populista, assistencialista ou política sistematicamente mencionada.
É claro que o ato do grupo do Exército brasileiro que entregou os três jovens detidos para ‘um corretivo’ no morro da Mineira não pode ser comparado com o ato dos membros da Resistência em termos de contexto, mérito, intenções e motivações. Mas uma idéia se conecta entre ambas as histórias.
O que exatamente faltou à mídia e à nossa sociedade que aproximou o fato ocorrido na cidade do Rio de Janeiro do ocorrido no pequeno povoado italiano? Alguém lembrar de acusar, investigar e prender os autores diretos dos homicídios: os assassinos do morro da Mineira. Tal assunto não aparece em fala alguma, em texto algum.
Tem se tratado dos assassinos como em Civitella. Era ‘natural, previsível e lógico’ que o grupo criminoso da Mineira fizesse o que fez. Eles são tratados como se estivessem tão-somente realizando o papel designado a eles. Nada diferente poderia se esperar. Eles e os nazistas seriam como máquinas automáticas de matar. Como se funcionassem como um impessoal e inimputável precipício no qual se atiraram as vítimas humanas.
Quando é que a mídia e a sociedade vão cobrar também a investigação e a prisão dos assassinos?
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Eles não têm assessores de imprensa — Sylvia Moretzsohn******
Historiador, autor de Quixote nas Trevas – o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo (Record, 2002)