Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Parecer da ANJ sobre o caso Lúcio Flávio Pinto

A diretoria da Associação Nacional de Jornais aprovou parecer do Comitê Jurídico sobre episódio envolvendo Ronaldo Maiorana, diretor corporativo das Organizações Rômulo Maiorana, e o jornalista Lúcio Flávio Pinto, editor do Jornal Pessoal, ocorrido em janeiro do ano passado em Belém (PA) [ver ‘Jornalista espancado por dono de jornal‘]. A seguir a íntegra do parecer, reproduzido do sítio da ANJ – Associação Nacional de Jornais; e, na seqüência, a réplica de Lúcio Flávio Pinto. Intertítulos da redação do OI

No dia 21 de janeiro de 2005, na cidade de Belém – PA, em um restaurante público e em horário de almoço, ocorreu uma agressão perpetrada pelo Sr. Ronaldo Maiorana, advogado e Diretor Corporativo das Organizações Rômulo Maiorana, com sede naquela cidade e que entre outras atividades de comunicação social edita o jornal O Liberal, contra o Sr. Lúcio Flávio Pinto, jornalista, editor e proprietário do Jornal Pessoal, também com sede na capital paraense.

Solicitado por esta entidade aos envolvidos, ambos remeteram suas manifestações, com documentos.

Destas peças pode-se retirar que existe, há bastante tempo, uma querela pessoal entre o Sr. Lúcio Flavio Pinto e a família Maiorana, o que pode ser verificado pelos textos dos exemplares do Jornal Pessoal. Estes textos, aliás, são apontados como a causa da agressão acima narrada, especialmente uma matéria publicada no exemplar tirado na primeira quinzena de janeiro de 2005 e depois republicada no exemplar da segunda quinzena, após a agressão, com o título ‘O rei da quitanda’.

A conduta do Sr. Ronaldo Maiorana foi objeto de ação penal que tramitou no juízo da 6.ª Pretoria Criminal de Belém onde não houve transação entre as partes. O Ministério Público, entretanto, propôs a transação penal que foi aceita, sendo imputado ao autor da agressão uma pena pecuniária, já cumprida.

A este Comitê não cabe julgar o mérito das matérias que teriam levado à agressão, nem mesmo formular juízo sobre a forma como foram vazadas, sendo o Sr. Lúcio Flavio Pinto livre para publicar suas opiniões no jornal que edita e assumindo, assim, a respectiva responsabilidade. Mais adiante, contudo, merecem ser examinadas as matérias que se sucederam à agressão.

Igualmente, não pode analisar a agressão em si. Embora a ANJ condene qualquer espécie de violência, especialmente quando se apresente como forma de solução de controvérsias, este ato foi objeto de apreciação pelo Ministério Público e julgamento pelo Poder Judiciário, que homologou pena, dando-se seu cumprimento. Aliás, é de ser ressaltado que o próprio Sr. Ronaldo Maiorana reconhece o erro ao dizer ‘devemos nos penitenciar por este ato extremo’ na carta que encaminha à ANJ.

Resta, portanto, verificar se a agressão se configurou ato restritivo ou que possa ter violado a liberdade de imprensa.

Primeiramente, como sistema de apreciação, parece ser pertinente verificar o contexto no qual ocorreu o fato e a relação entre agressor e agredido.

Delito comum

Os envolvidos são pessoas bastante conhecidas da comunidade paraense e brasileira. Ronaldo porque dirigente de importante grupo de comunicação social e Lúcio Flávio como jornalista experimentado com passagem por importantes veículos.

Exsurge dos documentos trazidos por ambos, que são inimigos figadais, sentimento potencializado pela natural publicidade das matérias escritas pelo editor e proprietário do Jornal Pessoal.

Neste contexto ocorre a agressão, dentro de um restaurante público e tendo como pano de fundo uma matéria publicada naqueles dias pelo Jornal Pessoal.

Desde janeiro até novembro de 2005 (não temos as edições de dezembro), o Jornal Pessoal colocou a questão em todas as suas edições, seja relatando os desdobramentos da agressão, seja reproduzindo matérias agressivas à família Maiorana, seja fazendo comparações entre outros casos e o caso pessoal do editor.

Várias destas matérias foram objeto de ações ajuizadas, ações estas denunciadas por Lúcio Flávio em primeira página como tentativa de intimidação.

O quadro, portanto, é de evidente rixa pessoal entre ambos, não havendo relação de causa e efeito entre a conduta do agressor e a restrição à liberdade de opinião e crítica. A agressão perpetrada não impediu qualquer publicação, mas ao contrário fez da rixa pessoal a linha editorial do Jornal Pessoal.

É muito difícil o exame claro do limite entre a violação à liberdade de imprensa e o delito comum em agressões a jornalistas, editores e proprietários de jornais, mas parece claro que questões pessoais, que eventualmente venham a ser objeto de matérias como se o veículo fosse uma arena para acertos de contas, refogem a este conceito. É de frisar, novamente, que o Sr. Lúcio Flávio Pinto tem liberdade para escrever o que entender, sem fazer aqui qualquer julgamento se o texto é ou não adequado. Este é um juízo sempre a posteriori que pode gerar, ou não, direito a reparação de eventual dano moral e material a ser exercido em ação judicial prevista na legislação em vigor. O que não parece adequado é buscar a transformação de uma briga pessoal em exemplo de violação à liberdade de imprensa. Até porque, esta liberdade – plena e sem restrições – nunca deixou de ser exercida.

A conclusão, portanto, é de que o reprovável fato deve ser entendido como delito comum e não como violação à liberdade de imprensa.

[Brasília, 21 de fevereiro de 2006. Comitê Jurídico. Associação Nacional de Jornais]

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À Diretoria da Associação Nacional de Jornais

Lúcio Flávio Pinto

Prezados senhores:

Quero agradecer-lhes pela atenção de me remeter, nesta data, o parecer do seu Comitê Jurídico a propósito da agressão de que fui vítima, praticada pelo sr. Ronaldo Maiorana.

A simples manifestação dessa ANJ, mais de um ano após o fato, ocorrido em 21 de janeiro de 2005, a despeito disso, merece registro. Depois de reiteradas solicitações que fiz à entidade, sobretudo em virtude da omissão ao meu caso no Portal da Liberdade de Imprensa, mantida pela ANJ, em conjunto com a Unesco, a Associação, finalmente, coletou material junto às partes para orientar seu pronunciamento a respeito.

Cabe-me lamentar que essa importante organização, representativa da imprensa brasileira, tenha considerado um evidente caso de violação da liberdade de imprensa como ‘rixa familiar’.

Tal classificação já fora estabelecida por essa mesma ANJ, logo após a agressão, quando provocada, através de alguns dos seus dirigentes. Foi o mesmo o pronunciamento da seccional da OAB no Pará, de bate-pronto, como costumam dizer os repórteres esportivos quando descrevem respostas tão imediatas, como se já estivessem prontas e acabadas, refratárias às evidências e provas, impenetráveis à luz da verdade.

Os documentos enviados a essa ANJ não devem ter provocado maior reflexão e mais pertinente análise dos fatos e das razões envolvidas. Apenas repisou o caminho interpretativo já previamente estabelecido, como um trilho rígido.

Reajo a esse parecer porque ele representa um perigoso precedente ao exercício da liberdade de informação e opinião em nosso país, muito mais do que por contraditar meu entendimento dos fatos. Pessoas de formação intolerante, pouco afeitas às regras de convivência numa sociedade democrática, serão tentadas pelo argumento que a ANJ, paradoxalmente, lhes fornece: de, ao agredir jornalistas, por artigos jornalísticos limpamente apresentados, apresentar seu ato como parte de uma rixa pessoal ou familiar. Rixa na qual uma parte usa as mãos para desempenhar o seu ofício de escrever e a outra, talvez em atividade de extensão, como punho agressor. Sinal dos tempos.

Nota fria

De fato, o Jornal Pessoal, que, com enorme dificuldade, edito em Belém há mais de 18 anos, se ocupa constantemente dos veículos de comunicação da família Maiorana. Seria impossível não fazê-lo sem comprometer a razão de ser do meu quinzenário, que é manter a opinião pública bem informada sobre os fatos e as questões de maior interesse público, e, nessa pauta, sobre a ação da elite dirigente, pública e privada. É compromisso da imprensa manter os dirigidos a par do que fazem os dirigentes, assim contribuindo para o Estado Democrático de Direito, princípio fundador da República brasileira. E não há nenhum grupo de pressão do porte do grupo Liberal no Pará, embora seja falsa a afirmativa do parecerista da ANJ de que todas as edições consultadas em 2005 falassem da empresa da família Maiorana.

O grupo Liberal chegou a controlar, nesse período, 98% do mercado de jornal impresso do Pará, conforme proclamou em várias peças publicitárias. Não há concentração de poder de mídia igual em nenhuma outra metrópole brasileira. Mesmo um pouco diminuído nos últimos anos, ainda é um domínio sem igual nas demais capitais do país. Por sua afiliação à Rede Globo de Televisão, o grupo Liberal também exerce amplo domínio nesse mercado de informação e entretenimento. É o mais poderoso formador de opinião no Estado, do que se vale para ampliar seu esquema de pressão além dos limites que a ética – empresarial ou de qualquer outra natureza – podia tolerar.

O grupo tem participado ativamente no processo eleitoral, apoiando determinado grupo político e hostilizando outros. Desde que respeitasse o sagrado compromisso com a informação, o que não acontece, seria esse um direito editorial da empresa. No entanto, quando o grupo político que recebe o apoio é derrotado, os veículos das Organizações Romulo Maiorana têm trocado as críticas feitas na campanha eleitoral, freqüentemente de forma apaixonada e antiprofissional, por elogios imoderados, desde que o antigo desafeto se disponha a fazer programação publicitária na empresa ex-inimiga. O exemplo mais notório ocorreu com o atual deputado federal Jader Barbalho. Em 1990 ele derrotou o candidato apoiado pelo grupo Liberal, Sahid Xerfan, apesar de ter sofrido uma violenta campanha. A partir do momento em que, no exercício do governo, voltou a anunciar nos veículos do grupo Liberal, as pesadas acusações de antes foram trocadas por matérias amplamente favoráveis, numa relação de causa-e-efeito imediata com a volta da publicidade oficial.

Situação semelhante viveram algumas das maiores empresas que atuam no Pará. A Rede/Celpa, concessionária de energia elétrica, foi vítima de seguidas matérias hostis quando ensaiou não renovar o patrocínio de uma promoção do grupo Liberal, ‘Andando pelo Pará’, comandada por seu principal executivo, Romulo Maiorana Júnior. O tratamento mudou quando o patrocínio foi confirmado. Já o Banco da Amazônia foi castigado porque só programou meia página do seu balanço anual em O Liberal, quando o balanço completo ocupava três páginas. Uma vez que o balanço integral foi publicado, a cobertura jornalística deixou de incluir qualquer crítica ao banco.

O caso mais grave envolveu a Companhia Vale do Rio Doce. A empresa não aceitou patrocinar outra promoção do grupo Liberal, na área esportiva. O grupo Liberal ajuizou então contra a empresa uma ação monitória por débito não honrado. A CVRD reagiu com uma ação de indenização proposta no fórum de Belém, alegando que o grupo Liberal apresentara nota promissória fria, sem endosso. No auge da guerra judicial em formação, as partes acabaram fazendo um acerto à margem dos autos e as ações ficaram em banho-maria. A propaganda voltou em plenitude. As críticas de antes evaporaram por completo.

Gestos de intolerância

O Jornal Pessoal tem relatado esses fatos, que são de alto interesse público. O leitor fica desnorteado porque uma campanha é desencadeada pelos veículos de comunicação que dominam o mercado, apontando tal empresa e tal político como nefandos. Subitamente, onde havia crítica surge silêncio e/ou elogio, sem qualquer explicação para a metamorfose. A explicação está no caixa da empresa, que, por isso mesmo, depois de ter mobilizado entrevistados para falar contra os alvos de suas críticas, muda drasticamente de lado, abandonando os temas que até então mereciam manchetes de primeira página, editoriais, cobertura extensiva.

O Jornal Pessoal mostrou, com fatos e provas, a razão da mutação editorial. Mas, até a agressão que sofri, nem Ronaldo Maiorana, que me agrediu, nem seu irmão, Romulo Maiorana Júnior, que com Ronaldo passou a patrocinar sucessivas ações contra mim, contestou um só desses artigos. Artigos que trataram unicamente de matéria pública. Nenhum deles abordou a vida estritamente privada desses cidadãos, limitando-se a analisar suas ações como empresários de comunicação, formadores (ou deformadores) da opinião pública. Nenhum Maiorana escreveu uma única carta que fosse ao Jornal Pessoal em resposta aos artigos publicados, nem os replicou através de seus próprios veículos. Silêncio absoluto.

A partir da agressão, a repetição das ações (sete criminais e quatro cíveis) tem o claro sentido intimidatório. Não só para intimidar o jornalista como para sufocar seu jornal até a morte, sobrecarregando-o de demandas e obrigações perante a justiça.

Observe-se que, nas quatro ações cíveis de indenização por dano moral e material, foi solicitada a antecipação de medidas inibitórias e proibitórias, a fim de que o Jornal Pessoal jamais voltasse a tratar de qualquer assunto referente aos Maiorana, sua família e seus negócios. Quem iria executar essas medidas antecipatórias, se elas fossem aprovadas pela justiça? Ora, a própria justiça. Estaríamos diante do absurdo dos absurdos, que até o regime militar se pejou de cometer: a censura prévia à imprensa realizada pelo poder judiciário.

Isso não é violação à liberdade de imprensa? Não é a própria anulação da democracia?

Quando quem viola o direito de imprensa não é o dono de uma empresa jornalística, a ANJ parece não ter dúvida em responder que sim. É o que tem feito em diversos casos recentes, de tentativa de quebra da ordem democrática, tão duramente construída – e ainda em construção – no Brasil.

Que rixa familiar é essa se, até a agressão do dia 21 de janeiro, o sr. Ronaldo Maiorana, pessoalmente, jamais a expressara? Se em todas as ocasiões anteriores em que nos encontramos o tratamento mútuo foi civilizado e respeitoso? Se nenhuma vez os veículos das poderosas Organizações Romulo Maiorana suscitaram essa tese? Se apenas os srs. Romulo e Ronaldo Maiorana, a partir de fevereiro de 2005, e a irmã deles, Rosângela, entre 1992 e 1993, ajuizaram ações contra mim? Esses gestos de intolerância não foram repetidos pelos demais irmãos, que são quatro. Nenhum deles jamais me acionou ou se queixou de mim.

Mundo do absurdo

Há um outro detalhe relevante a remeter para a irrisão esse argumento de rixa familiar. Os dois irmãos Maiorana dizem que lhes ofendi o pai, fundador do império, com quem trabalhei ao longo de 13 anos, ao fazer referência, no artigo ‘O rei da quitanda’, ao artifício jurídico ao qual Romulo Maiorana recorreu para colocar o canal de televisão, a ele concedido na década de 70 pelo governo federal, em nome de cinco de seus empregados, e não em seu próprio nome. Como havia restrições ao empresário nos órgãos de informação do governo militar, por sua associação ao contrabando no Pará, antes de 1964, a concessão foi feita em nome de uma empresa que só de fachada pertencia aos funcionários. Quando o veto caiu, o canal foi transferido a Romulo Maiorana, graças a um ‘contrato de gaveta’. Por que não no nome dele desde o princípio? Fatos são fatos. Os Maiorana não desmentem nenhum deles. Apenas não querem que eles sejam ditos. Como julgam-se os donos da história, o réprobo é condenado e punido, mesmo tendo razão, mesmo sem ser jamais desmentido.

Nesse artigo, citado no parecer da ANJ, não há uma única referência ao nome do agressor, Ronaldo Maiorana. Logo, ele não era parte legítima para propor qualquer ação contra mim na justiça, com base nesse mesmo artigo. Por isso, usou como pretexto a defesa da memória do pai. No entanto, sua mãe, viúva de Romulo Maiorana e a principal cotista da empresa (da qual é a presidente), com 51% das suas ações, não viu a mesma ofensa. Não só não propôs uma ação sua, como não subscreveu as queixas-crimes e indenizatórias dos filhos. Eu a indiquei como minha testemunha em todos os processos que tinham como pretexto a defesa da memória de Romulo Maiorana, por ser ela a pessoa mais autorizada a falar sobre a vida e a obra do marido. Pois tudo tem sido feito, com escrachado desrespeito à garantia constitucional da ampla defesa do réu, no contraditório durante o devido processo legal, para que Lucidéa Maiorana não seja ouvida, nem como minha testemunha nem como testemunha referida do juízo. Por que os irmãos Maiorana não querem que sua mãe testemunhe? Que diabos de ‘rixa familiar’ é essa, então?

É uma tese de ocasião, utilitária, da qual se têm valido o agressor e seu irmão, solidários na perseguição que me fazem através da justiça, que tem acolhido todas as suas demandas, com evidente excesso de pedir, em nítida litigância de má-fé, com a conivência de terceiros e a co-autoria de aliados. Como estou na condição insólita e singular de ser o único jornalista brasileiro contra o qual uma empresa jornalística, por decisão de dois dos seus oito dirigentes, declarou uma guerra total, que inclui a propositura de sucessivas ações judiciais, vejo-me excluído por essa ANJ de figurar no alongado rol de violações à liberdade de imprensa.

Ao ler o parecer do seu Comitê Jurídico, chego à conclusão que me resta assumir o papel que a mim pode caber em O Processo, terrível e definitiva criação literária com a qual Franz Kafka eternizou o mundo da irracionalidade e do absurdo, descrevendo-o e condenando-o como uma perversão e uma desumanidade. O parecer da ANJ o incorpora, como se ele não fosse o que é: uma monstruosidade. O que em Kafka é alegoria da rejeição, na ANJ é a materialização infeliz. Atenciosamente.

[Lúcio Flávio Pinto. Belém, 6/3/2006]