Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Sobre a atual crise de valores (a causa da causa)

Em artigo na Folha de S.Paulo (25/05/08) intitulado ‘Lamentável!’, Antônio Ermírio de Moraes fez uma reflexão sobre [1] a divulgação do IDESP – Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo que constatou a má qualidade do ensino público em São Paulo e sobre [2] a maior causa, do seu ponto de vista para esta situação, que seria a deterioração do respeito humano. Por concordar em partes com esta reflexão, passo a tecer algumas considerações sobre este tema crucial sobre o desenvolvimento da sociedade.

1. Sobre a má qualidade do ensino público paulista.

Considero que quatro motivos destacados no IDESP são suficientes para explicar a má qualidade do ensino público: 1) a falta de professores de matemática, física, química, história e geografia; 2) a ausência de interesse dos adolescentes pelos conteúdos ensinados; 3) a má gestão e o pouco envolvimento dos professores e dos diretores com a escola; e 4) a precariedade das condições nas quais os professores são obrigados a trabalhar. Os critérios de avaliação são o desempenho dos alunos nos exames do Saresp e o fluxo escolar.

Sobre a primeira causa, acrescentaria a insistência em proibir as disciplinas de Sociologia e Filosofia no ensino médio.

Aspectos morais e educacionais

Sobre as outras três causas, creio que estão interligadas: O aspecto modificador do interesse e participação dos estudantes (causa 2) no conteúdo ensinado tem a ver com a tradução das informações trabalhadas na escola para o cotidiano destes estudantes. Como bem observou Gilberto Dimenstein em artigo publicado no mesmo jornal (13/04/2005) no caderno ‘Cotidiano’ (‘Comunicadores do Futuro‘), se por um lado a precária estrutura das instituições públicas de ensino (causa 4) coloca limites ao aprendizado, por outro, a melhoria na estrutura, com acesso as tecnologias, não é suficiente por si só para promover o aprimoramento do ensino. Isto requer uma participação ativa dos professores e demais profissionais envolvidos com a educação (causa 3). Diante das dificuldades, há que se tentar formas criativas para que o aprendizado não seja prejudicado. E isso parte de ações simples, a começar, por exemplo, pelo tratamento aos alunos. Por exemplo: há uma clara diferença entre escolas públicas e privadas. No ensino privado, a criança é chamada por nome e sobrenome, na pública por um número, de acordo com a ordem alfabética.

2. Sobre a deterioração do respeito humano.

Não colocaria este problema como a principal causa da má qualidade do ensino público, pois penso que a questão extrapola os limites da escola. Enxergo esta deterioração do respeito humano como uma crise de valores, a qual agrega aspectos morais (nas famílias), passando por aspectos educacionais (sobre o problema tratado no item anterior) e até de ordem econômica.

Novos padrões de vida

É fato que há décadas o formato das famílias vem se alterando. Hoje, é grande a quantidade de pais separados e, mesmo para os que estão juntos, há o problema da falta de tempo, uma vez que homens e mulheres trabalham, ficando menos tempo com os filhos. Com isso, a educação que vem da família, que tem mais a ver com a formação individual da criança (formação de caráter, se assim posso dizer), fica prejudicada. Observo que, em muitos casos, os pais esperam que a escola os substitua nesta tarefa. A escola tem a função da educação para a sociabilidade. Isto é, ela deve ser um complemento da educação familiar, e nunca sua substituta. Como demonstra o Idesp, atualmente o ensino público é de má qualidade, o que significa dizer que ele não consegue realizar nem o seu próprio objetivo: a construção da cidadania, quanto mais substituir a educação familiar. Assim, temos que muitas crianças não recebem a devida atenção no lar (e aqui não estou criticando os pais, mas propondo uma reflexão sobre nosso atual modo de vida) e também não são devidamente educadas para a cidadania, na escola. Assim, já temos configurada uma crise de valores.

Por fim, e como complemento, quero relacionar ainda um outro fator.

A partir de meados dos anos 1970, o Brasil entrou numa fase de abertura econômica, acompanhando o período de democratização. De forma mais intensa, verificamos nos anos 1990 a mudança no padrão de consumo dos brasileiros. Mais eletrodomésticos, mais carros, enfim, toda uma série de novos produtos passaram a fazer parte do horizonte da massa trabalhadora. Embora haja a disponibilidade destes produtos e dos novos padrões de vida, o acesso a eles ainda não é fácil. As pessoas não têm dinheiro para comprar os bens que, hoje, elas julgam necessários. Daí a grande quantidade de financiadoras, empréstimos etc.

A característica da ‘coisificação’

Quando converso com pessoas mais velhas – com meu pai, por exemplo – sobre as dificuldades vividas na juventude, eles dirão que mesmo para as pessoas que vinham de outras regiões do país rapidamente se conseguia comprar uma casa. Geralmente, as famílias eram constituídas por jovens de 20 e poucos anos, e já com casa própria. Hoje, as pessoas não conseguem sair de casa sem se endividar muito.

Quanto à educação, não foi dada a devida atenção, no sentido de formar cidadãos. Ou seja, os esforços ficaram concentrados na abertura econômica e esqueceu-se a democratização. E sem cidadania não há democracia. E daí se fala muito hoje em crescimento, esquecendo-se o desenvolvimento. Ora, um país pode crescer, produzir mais e mais… Mas de que forma sua população está participando disso?

As novas gerações, desprovidas da educação básica – como foi colocado nos parágrafos anteriores – parecem ter incorporado este novo padrão de consumo como principal valor, na falta de outros. E para isso fazem qualquer coisa. ‘Ser alguém’, hoje, é ter!

Tenho reparado que essa deterioração do respeito humano tem como principal característica o que alguns sociólogos chamam de ‘coisificação’. Isto é, ver-se como coisa e tratar os outros como coisas (objetos). Repare que isto independe de classe social; são aspectos que perpassam todas as camadas sociais.

3. Conclusão

Por todos estes motivos é que chamo essa deterioração do respeito de crise de valores. E coloco este problema como algo muito mais amplo, que vai além dos limites do ensino público. Creio que o ensino público, ao mesmo tempo em que agrava o problema com sua má qualidade, sofre também as conseqüências desta crise.

O debate, no entanto, é intenso. E deve ser mesmo, pois se trata do maior problema para o desenvolvimento de nosso país. Abaixo você tem vários elos que trazem o artigo comentado, as repercussões e algumas ações alternativas. A discussão deve continuar e ampliar-se para toda a sociedade.

Referências

Idesp (Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo). Disponível em: http://idesp.edunet.sp.gov.br/Arquivos/SumarioExecutivo.pdf

MORAES, Antônio Ermírio. Lamentável! In: Folha de S.Paulo, 25/05/2008. Extraído do sítio Educação Já. Disponível em: http://educacao-ja.org.br/content/view/345/1/

REIS, Glória. Antônio Ermírio diplomou-se nos Estados Unidos, não confiava nas instituições educacionais brasileiras. Atualmente, para alunos pobres, acha a escola pública excelente e aponta os culpados pelo fracasso da educação no Brasil: os alunos. Disponível em: http://gloria.reis.blog.uol.com.br/arch2008-05-25_2008-05-31.html#2008_05-25_21_46_53-9085834-0

Pula o Muro, 10.04.2008. A Educação vai de mal a pior. Disponível em: http://pulaomuro.blogspot.com/2008/04/educao-vai-de-mal-pior.html

Ações alternativas:

DIMENSTEIN, Gilberto. ‘Comunicadores do Futuro’. In: Folha de S.Paulo, 13/04/2008. Caderno Cotidiano. Extraído do sítio Jornalismo Comunitário. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/colunas/gd140408.htm

Pula o Muro, 15.05.2008. Educomunicação. Disponível em: http://pulaomuro.blogspot.com/2008/05/educomunicao.html

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Sociólogo, São Paulo, SP