Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Espionagem dos EUA supera expectativas

Quando Ban Ki-moon, o secretário-geral da ONU, visitou a Casa Branca em abril para discutir as armas químicas da Síria, as negociações de paz entre Israel e Palestina e a mudança climática, ele teve um encontro cordial e rotineiro com o presidente Barack Obama. Entretanto, a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) começou a trabalhar antecipadamente e interceptou os pontos que Ban discutiria na reunião, feito que a agência mais tarde relatou como um “destaque operacional” em um boletim interno semanal cheio de bravatas.

É difícil imaginar que vantagem isso poderia ter dado a Obama em uma conversa amigável. Mas foi uma ação emblemática de uma agência que, durante décadas, operou sob o princípio de que qualquer bisbilhotagem que possa ser praticada contra um alvo estrangeiro de qualquer interesse concebível deve ser feita. De milhares de documentos secretos, a NSA emerge como um animal eletrônico onívoro de capacidades inacreditáveis, espionando e se intrometendo mundo afora para saquear os segredos de governos e outros alvos. Ela espiona rotineiramente amigos e inimigos. A missão oficial do órgão inclui usar seus poderes de vigilância para obter “vantagem diplomática” sobre aliados como França e Alemanha e “vantagem econômica” sobre Japão e Brasil, entre outros países.

Com as revelações sobre a NSA, houve um desfile de protestos na União Europeia, no Brasil, no México, na França, na Alemanha e na Espanha. James R. Clapper Jr., diretor da inteligência nacional, refutou repetidamente essas objeções como hipocrisia e insolência de países que também praticam espionagem. Mas, em uma entrevista recente, ele reconheceu que a escala da intromissão da NSA, com seus 35 mil funcionários e verbas anuais de US$ 10,8 bilhões, a diferenciam. “Não há dúvida de que, de um ponto de vista de capacidade, nós provavelmente somos muito maiores que qualquer um no planeta, talvez com exceção de Rússia e China”, disse ele.

Louca por siglas

Desde que Edward J. Snowden começou a divulgar os documentos da agência em junho, a enxurrada contínua de revelações abriu o debate sobre a missão da agência desde sua criação, em 1952. A Casa Branca ordenou uma revisão de sua coleta de informações domésticas e estrangeiras. Uma revisão dos documentos secretos do órgão obtidos por Snowden e compartilhados com o New York Times pelo jornal britânico Guardian oferece uma rica amostra das operações globais da agência e sua cultura.

Nascida na época em que um telefonema de longa distância ainda era um pouco exótico, a NSA viu o número de seus alvos potenciais explodir com o advento dos computadores pessoais, da internet e dos telefones celulares. Hoje a NSA extrai o conteúdo de cabos de fibra óptica, instala-se em centros telefônicos e hubs de internet, invade digitalmente notebooks e planta bugs em smartphones do mundo inteiro.

A base de dados Dishfire da agência – nada acontece sem um codinome na NSA – armazena há anos mensagens de texto do mundo todo, por via das dúvidas. Sua coleção Tracfin acumula gigabytes de compras com cartão de crédito. O rapaz que finge enviar uma mensagem de texto em um cibercafé na Jordânia pode estar usando uma técnica da NSA chamada Polarbreeze (Brisa Polar) para xeretar os computadores próximos. O empresário russo com grande atividade social na internet pode se tornar alimento para o Snacks (Serviços de Conhecimento em Colaboração de Análise de Rede Social, em inglês) da agência louca por siglas, que descobre as hierarquias pessoais e de organizações a partir de textos.

Missão grandiosa

A estação da agência de espionagem no Texas interceptou 478 e-mails enquanto ajudava a frustrar um complô jihadista para matar um artista sueco que havia desenhado imagens do profeta Maomé. Analistas da NSA entregaram para as autoridades do Aeroporto Internacional Kennedy nomes e números de voo de membros de um bando chinês de tráfico humano. Na operação chamada Orlandocard, técnicos da NSA instalaram um computador chamado “pote de mel” na web que atraiu visitas de 77.413 computadores estrangeiros e plantou programas de espionagem em mais de mil que a agência considerou de futuro interesse potencial.

“Nossa missão”, diz o atual plano de cinco anos da agência, que só poderá ser desclassificado como secreto após 2032, “é responder a perguntas sobre atividades ameaçadoras que outros pretendem manter ocultas.” As aspirações são grandiosas: “dominar totalmente” a inteligência estrangeira transmitida em redes de comunicações. A linguagem é corporativa: “Nossos processos empresariais devem promover a tomada de decisões com base em dados.” Mas o tom também é surpreendentemente moralista para um órgão governamental.

Talvez para desmentir qualquer ideia de que bisbilhotar é um empreendimento obscuro, a inteligência de sinais, ou Sigint, o termo artístico para interceptações eletrônicas, é apresentada como a mais nobre das vocações. “Os profissionais da Sigint devem ter moral elevado, mesmo quando terroristas ou ditadores tentam explorar nossas liberdades”, afirma o plano. “Alguns de nossos adversários dirão ou farão qualquer coisa para promover sua causa; nós, não.”

Erros e fracassos

Os documentos da NSA obtidos por Snowden e compartilhados com o Times, que são milhares e na maioria datados de 2007 a 2012, fazem parte de uma coletânea de cerca de 50 mil itens dedicados principalmente a sua contrapartida britânica, o Quartel-General de Comunicações do Governo, ou GCHQ na sigla em inglês. Embora não sejam abrangentes, os documentos dão uma noção do alcance e das capacidades da agência: que vão de navios da marinha que captam transmissões de rádio ao navegar ao largo da China, a antenas de satélite em Fort Meade, Maryland, que ingerem as transações bancárias mundiais, até os telhados de 80 embaixadas e consulados americanos ao redor do mundo, dos quais o Serviço de Coleta Especial da agência aponta suas antenas.

Mas os documentos divulgados por Snowden às vezes também parecem salientar os limites do que se pode realizar, mesmo com a mais intensa captação de inteligência. A poderosa espionagem da NSA no Afeganistão, descrita nos documentos como abrangendo igualmente órgãos do governo e esconderijos de militantes taleban de segunda ordem, deixou de produzir uma vitória clara contra um inimigo de baixa tecnologia. A agência registrou que a Síria acumulava seu arsenal de armas químicas, mas esse conhecimento não serviu para evitar a terrível chacina perto de Damasco em agosto.

Os documentos tendem a celebrar os sucessos autodescritos do órgão, mas não omitem totalmente os erros e fracassos da agência: enxurradas de informações obtidas a um custo enorme que ficam sem análise, interceptações que não podem ser lidas por falta de capacidades linguísticas e computadores que – até na NSA – enlouquecem de todas as maneiras habituais.

Mapeando rastros

Em maio de 2009, analistas da agência souberam que o líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, faria uma rara viagem à província do Curdistão, uma região montanhosa no noroeste do país. A agência imediatamente organizou uma missão de espionagem de alta tecnologia, parte de um projeto em andamento concentrado no aiatolá Khamenei chamado de Operação Dreadnought (navio de batalha). Trabalhando intimamente com a Agência Nacional de Inteligência Geoespacial, que lida com fotografias de satélites, assim como com o GCHQ britânico, a equipe da NSA estudou, a partir de satélites, o círculo do líder iraniano, seus veículos e seus armamentos e interceptou mensagens de tráfego aéreo quando aviões e helicópteros decolavam e pousavam.

Ela o escutou quando ele se dirigiu a uma multidão em um campo de futebol, estudou as estações de radar da defesa aérea iraniana e registrou a rica pista de comunicações de viajantes, incluindo coordenadas de satélites iranianos obtidas por um programa da NSA chamado Ghosthunter (caçador de fantasmas). A ideia não era tanto captar as palavras do líder iraniano, mas reunir dados para a espionagem geral do Irã no caso de uma crise.

Essas coleta de “impressões digitais de comunicações” é a chave do que a NSA faz. Ela permite que computadores da agência rastreiem o fluxo de comunicações internacionais e destaquem mensagens ligadas ao “líder supremo” do Irã. Em uma crise, a capacidade de invadir as comunicações de alvos poderia ser vantajosa. Esse enorme investimento em coleta de dados é conduzido pela pressão dos “clientes” da agência dentro do governo. Segundo relatos, a NSA fornece mais da metade das informações entregues à Casa Branca no briefing diário do presidente. Em toda crise internacional, políticos americanos recorrem à NSA para ter informações privilegiadas.

Pressão para informar

Isso cria uma intensa pressão para que nada escape. Na onda de investimentos que se seguiu aos atentados de 11 de setembro, o órgão se expandiu para muito além de sua sede em Maryland. Construiu ou ampliou importantes instalações na Geórgia, no Texas, no Colorado, no Havaí, no Alasca, no Estado de Washington e em Utah. Seus oficiais também operam em grandes estações no exterior, na Inglaterra, na Austrália, na Coreia do Sul e no Japão, em bases militares no estrangeiro e em salas fechadas que abrigam o Serviço de Coleta Especial nas missões diplomáticas dos EUA.

Usando uma combinação de convencimento, sigilo e força legal, a agência transformou as empresas americanas de internet e telecomunicações em parceiras na captação de dados: instalou filtros em suas redes, apresentou ordens de tribunais, construiu “portas dos fundos” em seus softwares e adquiriu chaves para burlar suas criptografias.

Mesmo essa vasta rede dirigida por americanos é apenas parte da história. Durante décadas, a NSA compartilhou as funções de espionagem com o resto dos chamados Cinco Olhos, as agências Sigint no Reino Unido, no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia. Uma cooperação mais limitada ocorre com vários outros países, incluindo acordos formais chamados de Nove Olhos, 14 Olhos e Nacsi, uma aliança de agências dos 26 países da Otan.

A extensão do compartilhamento do Sigint pode ser surpreendente: “A NSA pode ter um relacionamento com o Vietnã”, relatou um documento do GCHQ de 2009. Mas um recente documento de treinamento desse órgão sugere que nem tudo é compartilhado, mesmo entre os EUA e o Reino Unido. “Os relatórios sobre bem-estar econômico”, diz ele, referindo-se a informações captadas para ajudar a economia britânica, “não podem ser compartilhados com parceiros estrangeiros.”

A invasão de computadores tornou-se a área de crescimento da agência. Parte dos documentos descreve as façanhas das Operações de Acesso Personalizado, a divisão da NSA que invade computadores em todo o mundo para roubar seus dados e às vezes deixar software espião. A TAO é cada vez mais importante em parte porque permite que a agência evite a criptografia ao capturar mensagens enquanto são escritas ou lidas, quando não estão codificadas. Mas Joel F. Brenner, ex-inspetor-geral da agência, diz que grande parte das críticas às operações da NSA é injusta e reflete ingenuidade sobre a verdadeira política de espionagem. “A agência está sendo intimidada por fazer bem demais o que deve fazer”, disse ele.

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Scott Shane, doNew York Times