O pedido chega embrulhado em elogios, como um presente. Depois do preâmbulo adulador vem o motivo da mensagem. Alguém quer que eu escreva algo para uma pequena empresa ou corporação de porte. De graça.
Meu ofício, escrever, não me torna muito diferente de qualquer pessoa alfabetizada. Colunista? Repórter? Qualquer um pode se arvorar a ser, não importa a exigência de diploma de jornalista que, aliás, não defendo. Mas o fato de ser incapaz de introduzir aqui um teorema da física de partículas não significa que não dedico meu tempo e não me aplico ao ofício da escrita.
Por isso reconheci, como tantos que me enviaram o link para o artigo, a rotina descrita recentemente pelo excelente jornalista e cartunista Tim Kreider, no New York Times. “Escravos da internet, uni-vos”, bradava o título. E Kreider contava ter recebido, na mesma semana, três pedidos para trabalhar por US$ 0. Kreider tem 46 anos, conta que fez muita coisa na vida de graça, mas agora precisa dormir num colchão. Ele pedia que os jovens da geração do grátis digital que contemplem seu futuro de dores na coluna, e não trabalhem de graça por uma questão de princípio. A discussão provocada pelo artigo seguiu na mídia social.
A publicação mais proeminente nas críticas a Kreider, a Atlantic Monthly, fundada em 1857, tem seu telhado de vidro. Seu editor sênior, Derek Thompson, acha que escrever é diferente porque todo mundo faz isso de graça – em seus diários, no guardanapo do botequim. A noção de um editor, com salário, seguro médico e benefícios, sugerindo que colegas freelancers não exijam remuneração para escrever dá uma ideia da perversão que alguns preferem chamar de ruptura.
“Exposição” garantida
Em março deste ano, o jornalista Nate Thayer recebeu um e-mail da editora Olga Khazan perguntando se ele gostaria de “redirecionar” para o website da Atlantic um longo artigo que havia publicado sobre a diplomacia do basquete na Coreia do Norte.
O artigo teria que ser reeditado para acomodar o espaço reduzido do site. Thayer consultou a editora sobre o tamanho, o prazo e o preço. E recebeu da colega de profissão a seguinte resposta num e-mail: “Infelizmente, não podemos pagar você. Mas nós temos 13 milhões de leitores por mês”.
Khazan explicou que tinha acabado sua verba de freelancers naquele período, caso contrário, o jornalista receberia a astronômica quantia de US$ 100 para editar seu longo artigo. Insultado com a proposta, Thayer publicou toda a troca de e-mails em seu site, o que não foi justo com a editora, pois se tratava de uma conversa privada. Mas a reação provocada pelo episódio levou o constrangido editor da Atlantic, James Bennett, a escrever um pedido de desculpas para Thayer.
Aqui é necessário revelar que já usei um material da Atlantic de graça. Estava produzindo um segmento de TV sobre um estudo realizado na década de 1930 e a revista tinha editado um vídeo com um dos responsáveis pelo estudo. Como não posso licenciar vídeo – sou produtora terceirizada – a redação me cedeu cerca de 40 segundos de imagens do acadêmico que receberam o devido crédito de cortesia. Cedo imagens quando uma produção independente pede acesso ao meu arquivo. Posso escrever de graça para ONGs mas, até hoje, quando tentei ajudar amigos artistas duros, acabei sendo remunerada, mesmo que simbolicamente, porque eles acham que escrever é o que eu faço para me sustentar.
As histórias de Kreider e Thayer são conhecidas dos que passaram a ser chamados de “produtores de conteúdo”, uma expressão que evoca uma salsicharia e não publicações centenárias. Escrever de graça gera exposição, têm a desfaçatez de argumentar nossos colegas que publicam o material grátis para, em seguida, seu departamento comercial vender publicidade ou erguer uma paywall.
Alimento gratuito
Outra queixa de Tim Kreider – ninguém pede à sua irmã pneumologista para fazer uma rápida lobectomia de graça numa hora vaga – foi criticada sob o argumento de que escrever não requer a perícia e não implica o risco de uma cirurgia de pulmão.
O Alex Atala deveria cobrar apenas pelos ingredientes de seu menu de degustação, já que cozinha de graça para os filhos? Ou uma babá deve ser recompensada só com a exposição que adquire diante dos convidados do empregador, já que ela não cobra para cuidar dos próprios filhos na casa dela?
Variações do ditado “não existe almoço grátis” aparecem na literatura americana desde o século 19. Infelizmente, o capitalismo do século 21 parece ter se reinventado para uma minoria se alimentar de graça.
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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York