As formigas têm seus méritos. Não devia ser exatamente sua intenção, mas acabaram se tornando animais inspiradores assim que foram considerados uma ameaça nacional. “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”, disse o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire durante sua viagem ao País, em 1816. As formigas viraram música quando os fabricantes de formicida triplicaram a produção e tiveram a revolucionária ideia de anunciá-lo em larga escala em uma época que não existia nem rádio nem, naturalmente, TV. Enrico Borgongino criou uma polca de 3 minutos e 13 segundos com o nome do santo remédio e sua partitura foi impressa na Folha Nova de 19 de agosto de 1883. Era a primeira vez que surgia um bordão, com as palavras anotadas sobre as notas para serem cantadas: “Viva a Formicida Guanabara”.
As lâmpadas também ganharam luz na história assim que o País começou a fabricá-las no final do século 19. A marca Pyrilampo queria iluminar mais casas e partiu para a estratégia do anúncio publicitário musical mesmo em um mundo mudo. Ernesto Nazareth compôs um tango brasileiro com o nome da empresa e o lançou em uma partitura encartada na revista A Avenida de 12 de setembro de 1903. Em breve, estaria na sala das famílias brasileiras – ou aquelas que possuíam um piano.
A publicidade andou de mãos dadas com a música brasileira e ajudou a difundi-la na virada do século 19 para o 20. Um trabalho de pesquisas do arquiteto Paulo Cezar Alves Goulart, feito para a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), resulta em um livro e um CD que revelam um recorte ainda não visitado. Além de mostrar temas inéditos e outros conhecidos de compositores como Chiquinha Gonzaga (que fez o tango brasileiro Café de São Paulo e a valsa Perfume – Feno de Atkinsons) e Ernesto Nazareth, catalogado 13 vezes com músicas para lâmpadas (Pyrilampo), café (Ideal), xarope (Cardosina) e até o famoso cinema em que trabalhava (Odeon), traz autores pouco ou quase nada conhecidos, como o maestro italiano Luigi Della Rocca, autor da mazurkaCafé do Commercio, de 1887, e o catarinense Álvaro Souza, que compôs sua obraMikanol, “offerecida ao pharmaceutico Altamiro Oliveira”.
Goulart começou sua pesquisa farejando notas de jornais como A Província de S. Paulo (que mais tarde seria rebatizado como O Estado de S. Paulo), Correio Paulistano e Diário Popular, além de almanaques e revistas da época. Os textos, em linguagem publicitária, falavam dos produtos que ofereciam partituras gratuitas ao cliente que comprasse determinada encomenda. Seguiu então para os arquivos da Biblioteca Nacional e do Instituto Moreira Salles em busca das partituras anunciadas nos jornais. “Não tenho conhecimento de nenhum levantamento igual a esse no mundo”, diz Geraldo Alonso Filho, diretor do Instituto Cultural ESPM.
Livro gratuito
As histórias iam surgindo e ficava evidente o uso de um recurso provavelmente rentável aos avôs do jingle no Brasil.
A revista O Malho, de outubro de 1914, mostrava-se preocupada com a pandemia provocada pelo vírus influenza e anunciava a cura. “Tosse, Influenza, Coqueluxe – Cura-se somente tomando Mikanol.” A polca de 3 minutos e 20 segundos era oferecida no balcão das farmácias a quem comprasse uma caixa de Mikanol. Já as Águas Lambary, as “únicas naturalmente supergazeificadas”, foram anunciadas em um exemplar da revistaFon Fon, de 1909. As águas eram curiosamente vendidas em lojas de música, dentre as quais a Imperial Imprensa de Música de Viúva Filipone, responsável por editar algumas partituras de Ernesto Nazareth. Goulart insinua que a Viúva Filipone pode ter encomendado este tango brasileiro para agradar a seu cliente, mas são apenas suposições. De qualquer forma, Nazareth seria consagrado, na pesquisa de Goulart, como “o mais prolífico compositor de músicas publicitárias no Brasil antes do surgimento do rádio”, conforme escreve.
Tem Sorte, também de Nazareth, entrou no projeto não por ser publicitária, mas por fazer parte de uma espécie de categoria de homenagem a pessoas físicas possivelmente ligadas a alguma atividade comercial. Carlos T. de Carvalho dedica este tango a um amigo ilustre, o capitão Mário Novaes Guimarães. O pesquisador supõe que o homenageado, além de militar, fosse também um comerciante, mas não há mais profundidade do que isso para confirmar sua hipótese.
“As pessoas não necessariamente precisavam saber tocar para querer uma daquelas partituras”, conta Goulart. Antes do rádio, o piano era a instrumento das famílias de classe média para alta em São Paulo. O alvo dos anunciantes era justamente o núcleo familiar. Se conquistassem os lares brasileiros, ganhariam seus vizinhos, as praças e, quem sabe, o bairro inteiro, as cidades, o País.
Quando estava com 40 músicas pré-selecionadas em mãos, Goulart chegou ao pianista Amilton Godoy, que por 50 anos foi integrante do Zimbo Trio e hoje toca em carreira solo. Amilton estudou os estilos e a época, arregimentou os músicos e fez os arranjos respeitando o contexto histórico. “Disse aos músicos que se alguém tocasse bossa nova, estaria fora”, diz, rindo, para reforçar a seriedade com a qual encarou as peças do final do século 19, quando nem o samba existia e os ritmos vinham em forma de polca, tango, valsa, mazurca, cançoneta, quadrilha e, um pouco depois, choro. “Recebi 40 músicas para escolher 15. Acreditei naquelas que tinham vida própria, só ao piano”, diz Amilton. “Eu sonhava às vezes com uma solução para um arranjo, acordava e fazia. Imaginava sempre o monte de gente que devia estar lá no céu brigando para estar no projeto.”
Amilton deixa claro que gostaria de fazer um lançamento de Antes do Rádio com shows em São Paulo, algo ainda não confirmado pelos realizadores. E o livro não será vendido, estará disponível apenas na biblioteca da ESPM. A partir da noite de hoje [terça, 12/11], o conteúdo integral do CD estará no ar no site da faculdade; três faixas já podem ser ouvidas no portal do Estado.
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Julio Maria, do Estado de S.Paulo