Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O melhor amigo do deputado

Aquela cena de vandalismo que produziu grande repercussão e profusão de bobagens nas redes sociais ainda não chegou ao fim: na edição de sexta-feira (22/11), o Estado de S.Paulo informa que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) pretende apelar ao Congresso Nacional para assegurar aos pesquisadores o direito de usar animais em seus estudos.

Como se sabe, a invasão e depredação do Instituto Royal, foi praticada por ativistas que não admitem qualquer hipótese de reclusão de animais domésticos ou silvestres para testes científicos.

A polêmica é interessante, desde que submetida a uma faxina de histerias, meias-verdades e raciocínios tortos, que comprometem o entendimento do problema. Parte dessa nebulosidade poderá ser afastada durante o 6º Fórum Mundial de Ciência, que se realiza entre domingo e quarta-feira (24-27/11), no Rio, primeira cidade fora da Europa a sediar o evento.

Segundo a agenda divulgada pelo Globo, o médico e biólogo Paulo Sérgio Lacerda Beirão, coordenador do Conselho Global de Pesquisas, vai destrinchar a questão da integridade científica, envolvendo ética e uso de animais em laboratórios. Trata-se de uma excelente oportunidade para a imprensa lançar alguma luz no conturbado debate aberto com o sequestro de 178 cães da raça beagle do instituto que funcionava no município de São Roque, perto da capital paulista, ocorrido na madrugada do dia 18 de outubro.

Paulo Beirão é um cientista acima de suspeitas, contra o qual não se pode lançar aquela costumeira acusação de servir aos interesses da indústria farmacêutica. Além de pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, onde é professor titular e coordenador da Pós-Graduação em Bioquímica e Imunologia, Beirão é pesquisador associado de algumas das mais reputadas universidades e autor de trabalhos referenciais em ciências biomédicas.

Passado quase um mês do episódio, é possível que uma reflexão proposta pela coletividade dos cientistas ajude a colocar alguma racionalidade nas discussões, que podem produzir um estrago, se se confirmar a intenção do Congresso Nacional de alterar a lei que regulamenta a pesquisa nas áreas de saúde e biologia.

Oportunismo e retrocesso

Conforme se pode observar no noticiário dos últimos dias, o episódio em São Roque provocou comichões de oportunismo em muitos parlamentares, que resolveram reativar a Frente Parlamentar em Defesa dos Animais, na Câmara dos Deputados, e entrar no debate. Paralelamente, são desengavetados projetos que pretendem regulamentar o uso de animais em pesquisas. De repente, o beagle se tornou o melhor amigo de infância do deputado.

De acordo com a reportagem do Estado de S.Paulo, a SBPC afirma que a atual legislação brasileira é considerada um modelo para todo o mundo, e que qualquer tentativa de “aperfeiçoá-la”, nos padrões em que alguns temas são debatidos no Parlamento, pode fazer o país andar para trás.

A biomédica Helena Nader, presidente da entidade, observa que “nenhum país do mundo” proíbe a pesquisa com animais. Ela mesma desenvolve estudos sobre drogas anticâncer e para o combate de trombose. “Não tenho como experimentar em humanos. Como isso vai ser feito?”, questiona a cientista.

Da maneira que a questão está posta nas redes sociais, não há hipótese de consenso. A imprensa costuma dar o mesmo espaço para cientistas e para militantes de organizações de defesa dos animais. Em ambos os lados há excesso de ótimas intenções, mas o direito de expressão garante não apenas a algaravia dos ativistas da Frente de Libertação Animal, mas também o trabalho silencioso da indústria de medicamentos. Por esse motivo, os jornais devem abrir espaço para os debates que vão se realizar no Rio de Janeiro nos próximos dias.

A tradição do Congresso Nacional tem aconselhado a sociedade a manter sob cuidadoso escrutínio certas iniciativas, como se viu no conturbado processo de votação do novo Código de Defesa Florestal, cujos resultados já se podem comprovar nos preocupantes índices de desmatamento registrados nos últimos meses.

O território específico da observação da mídia não é suficiente para analisar uma questão que contrapõe a racionalidade científica às emoções envolvidas na relação entre o ser humano e seus animais de estimação.

Sob o efeito do espetáculo midiático, até mesmo a ética fica ofuscada.