Acha-se facilmente a revista Dicta&Contradicta no site da Livraria Cultura. Eis a sinopse:
‘Dirigida ao público intelectualmente desperto, desejoso de conteúdos mais profundos, com a finalidade de fornecer uma revista semestral de cultura, acadêmica sem academicismo, com excelente apresentação gráfica, a revista discute temas de pensamento, comportamento, filosofia, literatura e arte, além de analisar situações e fatos que mantenham interesse a longo prazo.’
Achando eu não estar intelectualmente adormecido, vou ao encontro da dita cuja. Seu primeiro número é deste mês de junho e há também o site oficial. O título é o mesmo de um livro do polemista vienense Karl Kraus, traduzido no Brasil como Ditos e desditos.
São 210 páginas. Patrocinada pelo Instituto Bovespa e pelo Banco Fator, impressiona visualmente. O que terá a nos dizer & desdizer?
‘Buzinada’ permanente
O texto que abre a revista é assinado pelo editor Henrique Elfes, que começa desdizendo o que o título dizia:
‘Ao contrário do que talvez se possa imaginar ao ver o título, não temos a intenção de criar polêmicas, mas de incentivar no Brasil o hábito da discussão de idéias, algo que se pode fazer com toda a nobreza e boa educação.’
A proposta parece cheia de boas intenções. Pressupondo-se que no Brasil discutir idéias esteja em baixa e que as discussões existentes não sejam nobres… Mais adiante, o editor avisa:
‘Temos consciência de estar apresentando uma realidade nova no panorama editorial brasileiro, algo que rompe as classificações recebidas. […] Como o leitor, sentimos a carência de instituições que assumam a tarefa de educar nos valores básicos do ser humano e na grande cultura clássica e humanística. Esta é a lacuna que queremos suprir, não dando uma `buzinada´ de um instante, mas de maneira permanente.’
Pretensão…
Para não me sentir superficial, quero apreender a novidade da revista, entender o que ela propõe em lugar das polêmicas sem nobreza.
Leio inicialmente a transcrição de uma palestra do poeta Bruno Tolentino, falecido no ano passado. Leio a análise do Eclesiastes realizada pelo professor Luiz Felipe Pondé. Há também artigo elogioso ao jesuíta canadense Bernard Lonergan, de autoria do pensador português Mendo Castro Henriques. Uma apologia da filosofia, do editor Henrique Elfes. Um ensaio sobre Ortega y Gasset, do jornalista Martim Vasques da Cunha. Há um artigo sobre Hamlet, do advogado Renato José de Moraes.
Mas o que existe de comum entre eles e, sobretudo, de imprescindível para nós, leitores? Afinal, os idealizadores da revista prometem uma ‘enxurrada de cultura’, hipérbole empregada pelo mesmo Henrique Elfes nas páginas programáticas de Dicta. O colaborador Júlio Lemos, em seu blog, afirma que se trata de revista high-brow. No Orkut, a comunidade Dicta & Contradicta, criada por outro dos articulistas, Dionísius Amêndola Valença, traz uma auto-descrição profética:
‘Pois é, ela agora está viva! O lançamento foi um sucesso e agora o negócio é preparar o próximo número. Bruno Tolentino, Luiz Felipe Pondé, Henrique Elfes, Mendo Castro Henriques, e toda uma nova geração de poetas, intelectuais e pensadores em um só lugar. Prontos para botar este país abaixo!´ Leiam, divulguem, espalhem a boa nova!’
Um jovem presente ao lançamento da revista, na Livraria Cultura, revela suas exaltadas impressões:
‘Cheguei há pouco do coquetel de lançamento de Dicta&Contradicta. […] Olavo de Carvalho já há tempos vem falando da necessidade de formar uma elite intelectual no Brasil para que esta possa disseminar a cultura em círculos concêntricos. O que pude observar lá, com uma pitadinha de inveja, confesso, foi justamente isso! Aquele pessoal já começa a dar os primeiros sinais de que esse conhecimento que permaneceu durante algum tempo num círculo bastante restrito começa a se irradiar. E o que mais me chamou atenção foi a quantidade de jovens que ali se encontrava. Não eram senhorzinhos caquéticos, nostálgicos de tempos passados, mas, sim, gente da minha geração, em cujos olhos pulsava entusiasmo.’
… e água benta
Na mencionada comunidade do Orkut, leio esta significativa mensagem:
‘Na mídia brasileira, a tendência geral tem sido sacrificar o conteúdo ao apelo popular, e o resultado é a superficialidade e fragilidade intelectual daquilo que se apresenta. Mais do que apresentar e comentar a programação cultural em cartaz a proposta é fornecer leituras interessantes e bases para a formação cultural. Buscamos também, não a rasteira polêmica do dia a dia político do país, mas aprofundar as conquistas culturais universalmente válidas. Para mais informações, por favor acessem http://ife.org.br/‘
O Instituto de Formação e Educação (IFE) responsabiliza-se pela publicação de Dicta&Contradicta. Um dos seus mentores, Martim Vasques da Cunha, é também diretor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS), no qual vários articulistas da revista dão aulas e palestras. Esse instituto, por sua vez, pertence ao Centro de Extensão Universitária, criado em 1972 por membros brasileiros do Opus Dei.
‘Projeto editorial’ da Obra
Henrique Elfes é editor. Em que editora? A Editora Quadrante, criada em 1964 por membros do Opus Dei.
O professor Luiz Felipe Pondé tem colaborado com a formação cultural de membros e freqüentadores do Opus Dei, como neste evento.
Mendo Castro Henriques é simpatizante da Obra. Um entre muitos outros indícios: sua contribuição à Revista Arbil, que defende a ‘regeneração moral e material da Espanha e do mundo’. Essa publicação é orientada por membros do Opus Dei.
Bruno Tolentino, no final da vida, reaproximou-se da Igreja católica, com a ajuda do Opus Dei. A revista oficial da Prelazia, em junho de 2006,registra que o intelectual brasileiro ministrou conferência num centro cultural da instituição.
O advogado Renato José de Moraes, desde 2002, integra a direção geral do Opus Dei no Brasil, conforme a mesma revista.
Em suma, e apenas por uma questão de respeito por aqueles que vão ler a publicação (que ora se apresenta com elevadas pretensões de salvar a vida intelectual brasileira), deixemos bem claro que ela é desdobramento de um antigo projeto, louvável para alguns, para outros detestável.
O ‘projeto editorial’ pertence ao fundador do Opus Dei, Josemaría Escrivá de Balaguer, que repetia aos seus seguidores: ‘Tenemos que envolver el mundo en papel de periódico.’ E, confirmando a imagem da ‘enxurrada de cultura’, acrescentava: ‘Hay que ahogar el mal en abundancia de bien.’
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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br