Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O ser humano e o estadista

Desde o anúncio da morte de Nelson Mandela na noite de quinta-feira, os canais de TV do mundo inteiro passaram a exibir, sem medo da repetição, o momento mais icônico da trajetória do líder negro: seus primeiros passos como homem livre, em 11 fevereiro de 1990, depois de 27 anos encarcerado. Não foram passos de um homem alforriado, mas de um vencedor e vitorioso moral. De um ponto de vista mais terreno e sem a grandiloquência que a viagem da Apollo 11 à Lua permitia, aqueles passos de Mandela também foram um salto e tanto para a Humanidade. Mereceram ser revistos à exaustão.

Foi pouco lembrado, no entanto, um insólito e revelador episódio ocorrido poucas horas antes daquele domingo ensolarado de fevereiro. Era o início da noite da véspera quando Mandela foi retirado de sua cela da prisão Victor Verster, última das penitenciárias onde passara quase três décadas de sua vida, a pedido do presidente Frederik W. de Klerk, que o aguardava para um encontro sigiloso. Eleito um ano antes e destinado a ser o dirigente branco a desmantelar o regime segregacionista do apartheid, o africâner De Klerk havia anunciado ao mundo, na semana anterior, que Mandela seria libertado. Apenas não mencionara a data.

Na noite daquele sábado convocara o preso para lhe comunicar de viva voz a data em que os portões se abririam para ele: no dia seguinte. Mandela foi pego de surpresa. Embora viesse tendo reuniões secretas há cinco anos com o ministro da Justiça Kobie Coetsee e desejasse respirar liberdade o mais depressa possível, considerou imprudente fazê-lo com aviso prévio tão curto. Conforme relatou em sua autobiografia, era a primeira vez que via De Klerk. Começou por agradecer ao presidente de seu país. Depois, apesar do risco de parecer ingrato, respondeu que preferiria aguardar uma semana. Ponderou que sua família, seu partido, o African National Congress, e a nação deveriam poder se preparar.

Porte de estadista

Perplexo também ficou De Klerk, que se retirou da sala para consultar seus assessores. Ao retornar, comunicou a Mandela que o prazo era inegociável. Um pouco como um hóspede que vai ficando incômodo, o prisioneiro foi informado de que no dia seguinte seria um cidadão livre, querendo ou não.

A última vez que Mandela fora visto em público, no tribunal que o condenara à prisão perpétua por sabotagem e terrorismo em 1964, ele tinha 44 anos. Agora estava com 71. Além do desterro físico por quase três décadas, o regime banira sua imagem, proibindo o comércio e a divulgação de fotos suas no país. Também jamais foi permitido que o retratassem na prisão, para não aumentar a áurea de mártir – embora essa invisibilidade forçada apenas aumentasse seu status mítico. A foto mais recente que o mundo conhecia de Mandela datava dos anos 1960 e o mostrava ainda com chassis de boxeador amador, bigode e cabeleira negra repartida na lateral.

O repórter Greg Myre, da agência noticiosa Associated Press e hoje jornalista da National Public Radio, contou que na véspera da libertação de Mandela o governo da África do Sul decidiu fornecer à imprensa o primeiro retrato atualizado do líder negro. Ele recorda seu espanto ao ver pela primeira vez a imagem daquela figura grisalha de olhar sereno e porte majestoso. Myre não foi o único. Mandela soube impactar do carcereiro africâner com quem tomou um copo de uísque no último dia de cativeiro ao próprio De Klerk, em quem causou uma primeira impressão indelével. Ambos diriam mais tarde que ele tinha porte de estadista.

Qual outro hóspede arrumaria a própria cama?

Se viver, como já disse alguém, mereceria ser reconhecido como uma das formas supremas de arte, Nelson Mandela dela foi mestre. A escritora sul-africana Nadine Gordimer assim definiu o conterrâneo: “Ele tinha respeito por si mesmo. Só pode dar-se a esse luxo a pessoa que sabe quem é e o que fez da vida. Mandela sabia.”

Ele foi o estadista do seu século. Aprendeu a tratar inimigos como adversários, na vida não trocou o humor pelo sarcasmo nem a integridade pela hipocrisia. Tampouco trocou hábitos que em qualquer outra pessoa seriam puro exibicionismo. Qual outro hóspede do Palácio de Buckingham arrumaria a própria cama, como se fosse a coisa mais natural do mundo?

Duas semanas atrás, o mundo inteiro rememorou o cinquentenário da dramática morte do presidente americano John F. Kennedy. Na ocasião, foram mais uma vez dissecados o impacto mundial e legado histórico de seu governo, visando a separar o mito JFK, e sobretudo a pessoa, de sua estatura como presidente.

No caso de Nelson Mandela não há o que separar: o ser humano e o estadista foram um só, um espelhou o outro.

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Dorrit Harazim é jornalista