Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um monumento à tolerância

O que esperaria a sabedoria convencional de uma pessoa normal que passasse 27 anos na prisão, apenas por defender seus ideais, aliás nobres? Que ele saísse da prisão vomitando ódio e ressentimento e que buscasse a vingança contra os opressores, dele próprio e de seu povo, os negros sul-africanos.

Para sorte da África do Sul, Nelson Rolihlahla Mandela não era uma pessoa normal, mas “um tesouro perdido”, para usar a expressão com que a então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, definiu o ex-presidente ao encontrá-lo em 2009, já aposentado –e como estadista, talvez o último do século 20.

Mandela saiu da prisão para apertar a mão de Frederik Willem de Klerk, então presidente do regime de apartheid, que segregava os negros de uma maneira tão brutal que, quando começou a acabar, em 1994, havia no país 750 mil piscinas, uma para cada duas famílias brancas, ao passo que, na outra ponta, 10 milhões de famílias negras não dispunham de água potável em suas habitações.

O simples gesto já era uma demonstração de tolerância e de espírito de conciliação. Tanto que ele e De Klerk acabaram ganhando juntos o Nobel da Paz (1993).

Na sua primeira entrevista após ser eleito presidente, em 1994, deu uma verdadeira aula magna de paciência, certamente aprendida em seu longo cativeiro.

Perguntei como ele pretendia fazer para evitar que a óbvia impossibilidade de atender rapidamente à demanda dos negros por uma vida mais digna, reprimida por séculos, não provocasse uma explosão de frustrações capaz de dinamitar a transição.

Sereno, com o jeito de avô sábio e bondoso que todo neto gostaria de ter (já estava com 76 anos), respondeu:

“Quando dermos a primeira casa para quem não a tem, todos os seus vizinhos ficarão com a certeza de que também terão a sua, mais cedo ou mais tarde, e esperarão”.

Esperaram, de fato, tanto que, na Presidência Mandela (1994/99), a África do Sul praticamente sumiu da mídia internacional, o que contrariou o padrão africano dos anos recentes ou mesmo o de países que saíram de longos períodos autoritários.

A África do Sul de Mandela não viveu uma das duas seguintes situações, talvez ambas, que usualmente ocupam a mídia:

1. Uma guerra tribal sangrenta e interminável.

2. A fragmentação em diferentes países etnicamente homogêneos, com a consequente “limpeza” das etnias minoritárias.

Esse espírito conciliador obviamente nasceu na prisão de Robben Island, em que ficou confinado na maior parte do período que passou preso (1963 a 1990).

Afinal, Mandela foi um dos criadores do Umkhonto we Sizwe (“A Lança da Nação”), o braço armado do CNA (Congresso Nacional Africano), o partido com o qual ele liderou a luta dos sul-africanos negros (e alguns poucos brancos) contra o apartheid.

No julgamento que o condenou, quando já estava preso, definiu a sua luta assim:

“Eu celebrei a ideia de uma sociedade livre e democrática, na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e o qual espero alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou pronto para morrer”.

Longo percurso

Mandela viveu e alcançou. Foi, de todo modo, um longo e penoso percurso desde o nascimento (18 de julho de 1918), na vilazinha de Mvezo (hoje parte da província de Cabo Oriental).

Conforme escreveu em sua autobiografia, era “um lugar distante, pequeno distrito afastado do mundo dos grandes eventos, onde a vida corria da mesma forma havia centenas de anos”.

Nascido Rolihlahla Mandela, coube a ele iniciar uma pequena mudança na rotina de sua vila ao se tornar o primeiro membro da família a frequentar uma escola, na qual ganhou o nome inglês “Nelson”.

Estudou cultura ocidental e iniciou o curso de direito na Universidade de Fort Hare, na qual sua vida ganharia a inflexão que o lançaria na luta contra o apartheid –o que, por sua vez, o levaria à clandestinidade (1961) até se tornar o prisioneiro 46.664 de Robben Island.

Saiu da cadeia (1990) quase diretamente para a Presidência (1994).

Seu período de governo parece um caso clássico de copo meio cheio, meio vazio. Se a transição do apartheid para uma democracia multirracial foi pacífica, a violência comum só fez se agravar, a ponto de ter sido o centro da campanha eleitoral para a sucessão de Mandela.

Havia, então, 50 mortes violentas por dia, a taxa mais elevada do mundo, de acordo com dados do Instituto de Estudos para a Segurança, de Johannesburgo.

Um dado, mais que todos, chocava: a cada 11 minutos uma mulher era violentada.

Outros problemas foram atenuados, mas permanecem graves: na educação, por exemplo, nos cinco anos Mandela, foram construídas 100 mil novas salas de aula e 1,5 milhão de crianças, antes à margem do sistema, passaram a frequentar a escola.

A qualidade do ensino, no entanto, continuava precária, e parte do gasto se perdia pelos ralos da ineficiência e da corrupção. Comparações similares poderiam ser feitas para praticamente todos os setores.

Mandela, contrariando padrão muito comum na África, não concorreu à reeleição. Entregou tanto o Congresso Nacional Africano como o poder a seu discípulo Thabo Mbeki e se retirou como uma espécie de monumento vivo.

Tanto que as atrações relacionadas a Mandela figuram entre as dez buscas mais populares na página do Departamento Nacional de Turismo da África do Sul (www.southafrica.net). Sete delas foram declaradas patrimônio nacional.

Ele se casou três vezes. A primeira mulher de Mandela foi Evelyn Ntoko Mase, da qual se divorciou em 1957, após 13 anos. Depois se casou com Winnie Madikizela –o casamento duraria 38 anos. O divórcio ocorreu em 1996, com as divergências políticas entre o casal vindo a público.

No seu 80º aniversário, Mandela casou-se com Graça Machel, viúva de Samora Machel, outro ícone africano, como líder guerrilheiro primeiro e, depois, presidente de Moçambique.

Teve seis filhos, 17 netos e 14 bisnetos –e parecia mais à vontade no papel de avô do que no de estadista mundialmente celebrado.

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Clóvis Rossi é colunista da Folha de S. Paulo