No Dia Internacional dos Direitos Humanos (10/12), o Observatório da Imprensa exibido pela TV Brasil apresentou uma entrevista de Alberto Dines com o professor Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da Comissão Independente de Inquérito da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a Síria e coordenador da Comissão Nacional da Verdade (íntegra do vídeo aqui). Ex-secretário de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso, Pinheiro preparou o projeto da Comissão da Verdade. Ele é professor da Universidade Brown, nos Estados Unidos e da Universidade de São Paulo.
Em editorial (íntegra abaixo), Dines lembrou que o Dia Internacional dos Direitos Humanos foi desrespeitado com a promulgação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968: “A quartelada transformou-se numa ostensiva ditadura que se prolongou por mais 17 anos, constituindo um conjunto de 21, os chamados Anos de Chumbo. Em defesa dos direitos humanos levantaram-se políticos de todas as tendências, também militares, acadêmicos, professores, advogados, médicos, estudantes, sacerdotes, pastores, rabinos e principalmente uma sociedade, uma nação inteira, ansiosa para gozar em sua plenitude o sonho da paz, da igualdade, da tolerância e do respeito humano quase sempre negados ao longo de nossa história”.
Dines abriu o programa questionando se o controle da violência é uma missão impossível. Para Paulo Sérgio Pinheiro, os tratados internacionais – da Declaração Universal dos Direitos Humanos à Convenção da Tortura – criaram condições para o controle da violência. Hoje, há comitês que acompanham as principais violações, que são desaparecimentos, detenções arbitrárias e casos de tortura, inclusive no Brasil. “Eu acredito que essa caminhada desde a Declaração Universal até os dias de hoje demonstra que é possível controlar a violência”, disse Pinheiro. Ele contou que estimula seus alunos a pensarem como o Brasil estava há dez, vinte e trinta anos. Desta experiência, pode-se perceber que desde o final da ditadura militar o país progrediu expressivamente no campo dos direitos humanos. O entrevistado ponderou que o desafio é grande porque na luta para assegurar as garantias fundamentais nada é simples, linear ou automático.
As muitas vozes da Síria
Dines perguntou como tem sido a postura dos atores que negociam a paz na Síria. O Pinheiro lembrou que, no início, o conflito era autêntico, as pessoas protestavam contra um regime que não era aberto. A Síria era, então, uma sociedade secular em que os grupos étnicos e religiosos conviviam com liberdade. Houve interesses que enxergaram na rebelião uma possibilidade de derrubar o governo. Com o tempo, a oposição se militarizou, inclusive os moderados. Agora, integrantes de grupos armados, como o Al Qaeda, atuam no país. Assim, não é apenas a luta pela democracia e por direitos humanos, pois outros interesses estão presentes, como o conflito histórico entre xiitas e sunitas. Há países que financiam grupos armados e apostam na guerra.
“Não há solução mágica. Em um conflito de três anos, não é sentando as partes em volta de uma mesa que a violência vai terminar”, disse Paulo Sérgio Pinheiro. Ele acredita que os entendimentos entre os Estados Unidos, a Rússia, a Europa e o Irã abrem caminho para uma solução diplomática. O principal objetivo das negociações de paz na Síria é obter um cessar-fogo, já que uma intervenção militar seria catastrófica. No entanto, a situação é complexa porque os grupos extremistas não querem a instalação de uma democracia e nem a liberdade religiosa. “O que se espera é que na medida em que algumas partes aceitem esse cessar-fogo, que isso possa contaminar outros grupos”, disse Pinheiro. Para o presidente da comissão da ONU, a Síria passa por um processo de transformação irreversível. Entre os governos do ex-presidente Hafez al-Assad e o atual, de seu filho Bashar al-Assad, constituiu-se uma sociedade moldada em um sistema autoritário mas onde as etnias tinham uma enorme autonomia.
“É preciso não subestimar que as sociedades, como as crianças, têm enorme resiliência, e não esperar que tudo esteja destruído. Em todos os contatos que tenho no exílio e as conversas no interior, você tem essa resistência”, relatou o Pinheiro. Ele acredita que na medida em que se chegue ao fim da violência e que um sistema de transição seja definido, será criada uma dinâmica para reconstruir a Síria sem a necessidade de intervenção militar ou da divisão do país. “Eu não sou otimista nem pessimista, eu não sou catastrófico”, explicou o professor.
Paulo Sérgio Pinheiro sublinhou que a questão do secularismo está ameaçada em toda a região. Grande parte da comunidade católica do Iraque refugiou-se na Síria porque, mesmo sendo um regime com características autoritárias, era possível conseguir proteção. “Virou um drama porque eles agora estão tendo que sair da Síria. Estão sendo abatidos, vários bispos foram sequestrados. Toda a tensão que houve na Europa em relação à imigração dos países árabes radicalizou o problema do Islã e isso gerou uma certa afirmação nos debates da ONU do reconhecimento do direito à religião”, disse o professor. Embora haja problemas pontuais, a situação é menos complexa do que no pós 11 de Setembro, quando os países islâmicos buscavam assegurar a predominância da sua religião.
Imprensa aliada
Dines questionou se a mídia pode atuar como um instrumento atenuador do conflito ou se está sempre sujeita a lobbies. Paulo Sérgio Pinheiro disse que há jornalistas que têm este perfil conciliador e ao mesmo tempo crítico, como Robert Fisk, do Independent. Outro exemplo na mesma direção é a editoria internacional do New York Times, que recentemente publicou uma reportagem mostrando como a população síria está se distanciando dos grupos armados. Para ele, a imprensa tem sido extremamente reveladora da verdadeira natureza do conflito, mesmo tendo-se em conta que esta é uma guerra travada também no campo das comunicações. “O papel da imprensa atenua o conflito na medida em que ela revela os horrores da guerra”, assegurou. O professor comentou que o canal de vídeos na internet YouTube é uma mostra de como imagens sem autenticidade acabam sendo transmitidas durante o conflito.
Em relação ao trabalho da Comissão da Verdade, no Brasil, o entrevistado preferiu colocar a situação do Brasil em perspectiva. Paulo Sérgio Pinheiro comentou que se costuma dizer que o país começou tarde a investigar os crimes cometidos durante o regime militar, mas isso não é verdade quando se compara com outras nações. O país conta mais de 18 anos de avanços nas políticas públicas sobre a ditadura militar. A atuação do Brasil mostra que o debate não pode ser contaminado por questões políticas. “Em termos de direitos humanos, não há carteirinha”, disse, em referência às filiações partidárias.
Os governos Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff complementaram o trabalho deixado pelas gestões anteriores, o que é um caso raro no país. Pinheiro lembrou que o governo FHC tomou a importante iniciativa de reconhecer que o Estado era responsável pelos crimes da ditadura. A criação de grupos de trabalho como o “Brasil, Nunca Mais”, do qual participaram nomes como Paulo Vannuchi e Luiz Eduardo Greenhalgh, as pesquisas realizadas pelas famílias de mortos e desaparecidos e as reparações promovidas pelo governo completam o quadro de avanços.
Passado revisitado
Paulo Sérgio Pinheiro considera notável que a Comissão Nacional da Verdade tenha estimulado o aparecimento de grupos com o mesmo perfil por todo o Brasil. Só em São Paulo são quatro comissões atuando. Dines perguntou sobre o resultado do trabalho da Comissão Nacional da Verdade. Paulo Sérgio Pinheiro explicou que alguns setores, como as Forças Armadas, ainda têm resistência em liberar o acesso a documentos que podem esclarecer uma série de questões em aberto do regime pós 1964.
“Das quarenta Comissões da Verdade que existiram no mundo desde 1980, nenhuma tem função de punir. Isso às vezes fica um pouco confundido. É para buscar a verdade. Nós temos o mandato para reconstituir as circunstâncias e apontar autores. O destino disso, evidentemente, vai ter uma outra dinâmica, antes e depois. É evidente que, em um determinado momento, a responsabilidade desses perpetradores de horrores vai ter que ser buscada. Não está na nossa competência, não nos cabe fazer isso. Mas a existência de um relatório que desvende tudo isso coloca a luta contra a impunidade em um outro patamar”, afirmou Pinheiro.
O trabalho da comissão está focado em reconstituir os crimes cometidos durante a ditadura a partir de depoimentos e de documentos. As recomendações do relatório final terão um grande peso. “Em toda comissão há uma série de recomendações para o presente. Nós estamos vivendo com o legado da tortura. Há o caso, no Rio de Janeiro, do [desaparecimento do ajudante de pedreiro] Amarildo. Nos relatos dos policiais militares há alguma coisa que não é compatível com o que está acontecendo. E há outros casos semelhantes”, exemplificou Pinheiro. Ele contou que a comissão esteve na ex-sede do DOI-Codi em São Paulo, na rua Tutoia, um dos maiores centros de tortura e de extermínio do Brasil. Hoje, o local abriga uma delegacia. Com a visita da comissão, houve a constatação de que não é correto funcionar uma repartição pública onde antes era uma câmara de tortura, e o prédio agora está em processo de tombamento.
A mídia é um importante aliado na criação de uma consciência em torno dos direitos humanos: “Na realidade, tanto a televisão quanto a imprensa escrita dão uma cobertura extraordinária às violações de direitos humanos, desde a Comissão Teotônio Vilela, que foi fundada em 1983. A imprensa, na construção democrática, se tornou muito mais sensível. O espaço que os direitos humanos conquistaram, isso antes dos blogs e da internet, foi extraordinário. E isso acontece no mundo inteiro”.
Para Paulo Sérgio Pinheiro, conceitualmente, os direitos humanos situam-se justamente na resistência à violência e na construção da paz. “Nessa caminhada, a ditadura foi um interregno isolacionista do Brasil. Hoje, o Brasil, no período democrático, é considerado um negociador confiável, mesmo na área de direitos humanos, onde nós temos inúmeros problemas. Tanto em Genebra quando em Nova York, o Brasil é respeitado por essa continuidade de política de Estado construída na democracia”, disse Pinheiro.
Desafio e missão
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 713, exibido em 10/12/2013
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10 de dezembro, dia em que está sendo exibido este programa, é o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Trata-se de um compromisso estabelecido pela Organização das Nações Unidas, em 1950, dois anos depois da Declaração Universal de Direitos Humanos e cinco anos depois do mais sangrento conflito da história, a Segunda Guerra Mundial.
Este compromisso com os direitos humanos foi desrespeitado há 45 anos, no dia 13 de dezembro, uma sexta-feira, quando o governo militar, que tomou o poder quatro anos antes, promulgou o Ato Institucional nº 5, que contraria frontalmente os mais importantes direitos garantidos pela Declaração Universal. A quartelada transformou-se numa ostensiva ditadura que se prolongou por mais 17 anos, constituindo um conjunto de 21, os chamados “Anos de Chumbo”.
Em defesa dos direitos humanos levantaram-se políticos de todas as tendências, também militares, acadêmicos, professores, advogados, médicos, estudantes, sacerdotes, pastores, rabinos e principalmente uma sociedade, uma nação inteira, ansiosa para gozar em sua plenitude o sonho da paz, da igualdade, da tolerância e do respeito humano, quase sempre negados ao longo de nossa história.
Paulo Sérgio Pinheiro é um exemplo vivo dos postulados que defende: acima das diferenças, das paixões, dos partidos, acima até mesmo do bairrismo, já que nasceu e se formou no Rio, fez a sua carreira acadêmica em São Paulo, onde reside, e vem servindo ao ideal dos direitos humanos em Brasília desde os anos 1990 como secretário de Estado de Direitos Humanos no governo FHC. Preparou para o presidente Lula o projeto para a Comissão da Verdade, da qual foi o terceiro coordenador indicado pela presidente Dilma Rousseff. É um dos mais destacados diplomatas brasileiros na ONU, presidente da Comissão Internacional de Investigação para a Síria, com sede em Genebra.
Paulo Sérgio Pinheiro: o controle da violência é uma missão impossível?