A censura é uma das primeiras armas das quais as ditaduras lançam mão para sufocar a liberdade de expressão, a verdade e a própria história. Ela parece tão traumática que, uma vez superada, todos a esquecem, inclusive – e surpreendentemente – os que dela foram vítimas diretas.
A falta de depoimentos e estudos sobre a ação da censura política no Brasil contribui para apagar o passado, extirpando as lições que proporcionaria se fosse submetido a uma reflexão crítica. Deixa a sociedade indefesa diante de um mal que costuma suceder a castração da informação pelo Estado: a autocensura dos próprios cidadãos.
Vivemos num período de desbragada autocensura, quebrada apenas pela verborragia drenada pela internet, que acaba comprometendo a capacidade de entendimento da realidade. Essa é uma anomalia. Talvez nunca tenhamos tido tanta democracia como agora em toda a história republicana do Brasil. Por que, então, seu exercício, que parece pleno, é, na verdade, tão limitado?
Nunca se denunciou tanto roubo e nunca se roubou tanto. Nunca a opinião pública esteve mais mobilizada pela harmonia e nunca o país foi tão violento. Nunca estivemos tão próximos de eliminar vícios e corrigir erros seculares. Nunca, também, estivemos tão vizinhos da desesperança. Batemos recordes econômicos nos registros quantitativos, mas cresce o número dos que vivem mal e dos insatisfeitos. A riqueza que se acumula não se distribui, ou só uma pequena parte dele segue os drenos sociais, na forma de compensação. O céu existe para uns, mas não é apenas miragem para outros, a imensa maioria.
Tema monocórdio
O Brasil se dilacera na antessala do paraíso. É possível divisar, no horizonte próximo, ideais de grandeza que foram utopia para gerações anteriores. No entanto, a pequena distância que separa o sonho da realidade parece agora intransponível, como se houvesse uma parede de aço transparente blindado no meio do caminho – e não apenas a pedra alegórica de Carlos Drummond de Andrade, na qual não paramos de tropeçar.
A democracia, como bem sabemos, é o melhor dos inventos políticos da humanidade, a despeito de todas as suas falhas. Mas há alguma coisa de patológico nas democracias quando elas criam realidades estanques, dois mundos visceralmente distintos no mesmo mundo aparente. Quando gera os “mais iguais”, quando anestesia a maioria para os crimes da minoria, criando vias de mão dupla para a fluência da vida social, parece que a democracia, na sua mecânica de funcionamento, começa a liberar gases que poderão sufocá-la em breve. Seu organismo deixa de produzir os anticorpos para defendê-la dos males desse funcionamento desequilibrado.
Não há clima para atentados à democracia, sustentam os analistas. É verdade. Não há nada favorável a mais uma funesta quartelada. Mas, se fosse discípulo de Durkheim, eu diria que a anomia em que vive a sociedade brasileira, que retornou ao seu berço esplêndido depois das grandes manifestações de rua de junho, vai provocar uma crise depois do próximo impasse grave. Se a febre está crescendo, é porque a infecção se alastra, se agrava. É preciso tratá-la. Chega de analgésicos para sua manifestação superficial. De soluções de meia sola.
Um dos seus focos está na produção e difusão da informação. Com a rede mundial de computadores, a internet, o cidadão, em tese, tem acesso a todas as informações. Mas, em geral, não àquelas informações que realmente lhe interessam, aquelas com as quais pode escrever a história que está ao alcance das suas mãos. Informação continua a ser poder, mais do que nunca. Quem tem poder não o cede graciosamente.
Os intelectuais, os mais habilitados a ir às fontes das informações preciosas e socializá-las, tirando-as das torres de marfim (ou das coberturas) e assim garantindo uma das bases de perenidade da democracia, como bem de valor coletivo, estão sendo privatizados. O intelectual vive cada vez mais num círculo vicioso. Produz para seus pares, usando o que produz como alavanca para uma carreira meramente acadêmica, como elemento de prestígio em currículos brilhantes, que são o código do abre-te-sésamo para verbas de pesquisa, títulos, posições, status e, eventualmente, fortuna.
A história é o cotidiano relevante. O cotidiano é múltiplo de fatos ao infinito, mas só algumas das sementes espalhadas todos os dias sobre o tecido social irão se desenvolver, “pegar”. As demais serão como a poeira que é varrida, juntada e atirada aos depósitos de lixo diariamente. É preciso discernir o aparente do real, o falso do verdadeiro, a propaganda da verdade, manipulada à exaustão por todos os meios de comunicação.
Um grande jornalista americano, Jack Anderson, observou que a máquina da democracia não pode funcionar tão azeitada que não permita a audição de ruídos. Se ela funciona em total silêncio é porque não está abrigando suficiente crítica. E sem crítica a democracia pode se tornar uma formalidade, em seguida uma ociosidade e, no futuro, talvez, uma inutilidade.
Neste aspecto, a democracia brasileira é uma máquina silenciosa. Isso porque a grande imprensa, aquela que realmente atinge as massas, está caminhando para se tornar um coro em uníssono. Ela faz críticas e algum barulho, desde que controle essa cacofonia do diverso. Admite outras vozes, desde que elas se incorporem à voz do dono, lhe sejam o eco, a extensão em falsete.
Pode haver variações, mas elas têm que ficar em torno do mesmo tema monocórdio. Há caminhos alternativos, mas como as passagens de uma ferrovia: depois de desviar para evitar o choque, o trem precisa voltar ao trilho principal. A direção, quem a estabelece, é o dono da ferrovia.
Movimento inverso
O dono do trem é quem faz a história e não abre mão de escrevê-la conforme os seus interesses, como já estamos cansados de saber. A Amazônia comporta todos os tipos de interesses, dos mais vis aos mais nobres, dos reais aos imaginados, dos pessoais aos corporativos e governativos. Por isso mesmo, é um tema de civilização, que transcende uma dimensão regional. Sua ocupação serve de marco e referência para o grau de civilização dos seus detentores, os brasileiros, e para a hipótese de solidariedade entre os humanos, a despeito de suas enormes – e às vezes brutais – diferenças.
A Amazônia, para tomar emprestada a expressão valorizada pela teologia, é um sinal dos tempos. Seu valor utilitário já tem uma amplitude internacional. Opõe os que querem continuar a deter todas as formas de expressão e de ação e aquelas pessoas que se incorporaram ao enredo em função do significado mais íntimo que a Amazônia tem para elas.
Elas creem – à parte suas divergências – no valor da inteligência, do diálogo e do entendimento como a via adequada para a realização do plano humano em qualquer lugar. A Amazônia integra mentalidades, mesmo daqueles que estão distantes dela, jamais a viram pessoalmente, nem podem a ela associar fisicamente suas vidas, mas a têm em suas mentes e em seus corações – hoje, como ontem. Não é por acaso que foi batizada como ente mitológico, a terra das imaginadas guerreiras amazonas.
Mas, muita atenção: quando não possuir mais florestas nativas, quando suas águas forem do mesmo volume das bacias hidrográficas remanescentes, a vida natural for menos complexa e sua biblioteca biológica tiver sido dilapidada, que impulsos a Amazônia provocará ao redor do mundo? Quem se interessará por ela? Com que propósitos?
A Amazônia não pode continuar a ser a terra da barbárie, manifeste-se essa selvageria sob a forma de execuções sumárias de pessoas ou utilização de trabalho escravo, imposição de preços abusivos aos seus recursos econômicos ou exploração irracional dos seus recursos naturais, a lógica do faroeste e a razão do mais forte, o cinismo operacional dos que não veem qualquer possibilidade de autoria fora do destino colonial manifesto.
A Amazônia merece receber um tratamento inteligente, bem informado, fundado na razão, movido por impulsos generosos, tendente a um comércio justo, refratário aos padrões coloniais do passado (e do presente), sem um dono ou feitor, sem que um pequeno grupo imponha a sua vontade aos demais apenas porque tem capital suficiente para comprar aliados ou poder político para se valer do aparelho de estado.
O poder só se tornará verdadeiramente democrático se os detentores dos cargos públicos estiverem ao alcance da sociedade que lhes delegou esses instrumentos decisórios. O principal deles é a caneta que admite e demite, libera ou retém recursos, sanciona ou cancela contratos.
Com os prós e contras inevitáveis, um dos eixos de fiscalização é o Ministério Público, a instância institucional com maior capacidade de iniciativa e o canal mais aberto para captar o barulho das ruas, que ressoa inutilmente pela consciência do nosso presidente-sociólogo. A imprensa tem proximidade ainda maior, se ela não está comprometida com as conexões do seu negócio, as comerciais e as políticas, numa contaminação letal. A imprensa não pode ser intimidade e coagida no exercício da sua função pública.
Foi salutar que a Constituição de 1988 relacionasse a liberdade de expressão aos direitos individuais do cidadão no combate ao sensacionalismo, à exploração mercantil, à extorsão e à chantagem através dos meios de divulgação de massa. Mas essa inovação no direito brasileiro não pode servir, em movimento inverso, para que a dimensão subjetiva se hipertrofie e faça calar o contracanto da crítica, sem o qual o que sobra é um coro dos contentes manipulável pelos inquilinos e, já a partir daí, donos únicos do poder.
Falsos democratas
O jornalista é um servidor do público. Sua função é auditar o que estão fazendo aqueles que exercem cargos e desempenham papéis públicos, no governo ou na iniciativa privada. Um jornal não existe apenas para distribuir elogios ou realizar a agenda do entretenimento, embora ambas sejam necessárias atividades jornalísticas, com direito ao próprio espaço. Sua principal tarefa é confrontar o discurso oficial à realidade, buscando a correspondência entre o que dizem que fazem os poderosos e o que eles efetivamente estão fazendo. A linguagem jornalística é, portanto, necessariamente crítica, embora não necessariamente negativa.
Há que se respeitar direitos individuais tutelados pela lei, mas superveniente é o interesse coletivo. Tudo o que for dito a respeito da oposição entre os dois anos, o do indivíduo e o da sociedade, desde que guardada a consistência dos dados e as formalidades da linguagem, deve ser dito de público.
Assim será alimentado um debate que, travado através da imprensa, possa ajudar a definição nos escalões institucionalmente decisórios. Isso difere do dano social que uma perseguição sistemática através da justiça tem provocado às publicações independentes e críticas, privando-as do tempo, da tranquilidade e das condições para o desempenho de sua função de fiscal do poder. Não por acaso assistimos ao fim da imprensa alternativa e do jornalista de combate, em plena democracia.
Qual a pedagogia de uma perseguição que cala os críticos e exalta os incensadores do poder? Qual a lição de direito que queixosos dão quando suas exacerbadas suscetibilidades servem de arrimo ao esmagamento de situações objetivas, concretas, que dizem respeito a temas de interesse coletivo? O que resulta de levar para os autos forenses um contraditório que deveria estar acessível a todos nas páginas dos jornais, deslocando para recônditos exclusivos o que seria melhor se socializado?
Esquecem esses perseguidores pela via judicial que são pessoas públicas. Por isso, deviam justificar essa condição com uma contraprestação de serviços ao público, fonte de seu poder ou – sem querer ou ser informado – de sua riqueza. Tais pessoas não querem reconhecer o povo como destino de tudo aquilo que realizam quando deixam o limite de seus domicílios particulares, o sagrado reduto dos seus lares, para ingressar na arena coletiva. Nela, tudo que é relevante exige explicação, divulgação, cobrança. É assim que funciona bem a máquina barulhenta da democracia.
A desatenção da opinião pública para esse fato explica o paradoxo de haver tanta informação circulando no mercado paralelamente a tanta desinformação e desorientação coletiva. Essa situação tem nexo causal com o fim da imprensa alternativa, a mais crítica e independente nos anos de chumbo, quase totalmente eliminada nos nossos dias democráticos. Formalmente democráticos, não há dúvida. Mas dominados por falsos democratas, medíocres líderes populares ou pessoas que desfiguraram por completo a noção de serviço público, tanto quanto a de povo. Em nome de quem falam, não sem antes tirar-lhe a voz, que, como sabemos, passa a ser a do dono.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)