Tentar explicar ‘o que é jornalismo’ e por que as notícias são como são. Esse é o desafio, nada simples, do livro Teorias do Jornalismo (vol.1), de Nelson Traquina (224 pp, Editora Insular, Florianópolis, 2004). A obra foi lançada em abril e a editora promete para breve (embora sem uma previsão fechada) seu segundo volume.
Português nascido nos Estados Unidos, Traquina é mestre em Política Internacional, formado em Jornalismo pelo Institut Français de Presse e doutor em Sociologia, conforme apresentação do professor Eduardo Meditsch no livro. Como jornalista, foi correspondente da UPI. Hoje professor da Universidade Nova Lisboa, que teve o primeiro curso de Comunicação em Portugal fundado em 1979, Traquina se dedica ao estudo do Jornalismo. ‘[Para ele] O que deveria distinguir a formação universitária do jornalista seria o estudo teórico da prática jornalística’, explica Meditsch [veja, abaixo, remissão para a íntegra da apresentação de Eduardo Meditsch para o livro de Traquina].
No Brasil, quem é considerado o ‘fundador da disciplina Teoria do Jornalismo’ é Adelmo Genro Filho (irmão do atual ministro da Educação), autor do livro O segredo da pirâmide, de 1987. Nele, Adelmo (1951-88) formulou uma teoria marxista do jornalismo. De lá para cá, o estudo desse assunto se expandiu – principalmente entre pesquisadores de algumas universidades federais. Várias escolas de Comunicação vêm introduzindo a disciplina Teoria do Jornalismo em suas grades curriculares. A primeira que fez isso deve ter sido, ainda segundo a apresentação de Meditsch à obra de Traquina, a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), em meados da década de 1980. A publicação de livros de teoria do jornalismo, no entanto, parece até ser mais ‘monopólio’ dos portugueses no Brasil: afinal, além da obra de Traquina, há também em nosso mercado editorial Teorias da notícia e do jornalismo, de Jorge Pedro Sousa (Florianópolis, Letras Contemporâneas, 2002).
Traquina não aborda o caso brasileiro. Seu objeto de estudo se concentra em alguns países, como Estados Unidos, Reino Unido e França, principalmente, mas também Portugal. Daí sua afirmação, logo no primeiro capítulo, da ‘relação simbiótica entre jornalismo e democracia’. Para tentar cumprir seu desafio de definir o jornalismo, o professor português recorre a grande bibliografia, principalmente de norte-americanos e franceses. Consciente do desafio, ele assume o risco.
Outro livro
A discussão se dá no seguinte ambiente: sabe-se que nós, jornalistas, somos pouco adeptos da teoria – às vezes até preguiçosos para tentar explicar, por exemplo, por que escolhemos a notícia X e não a Y. Sabe-se também que somos pouco simpáticos aos estudos acadêmicos. Sabe-se além disso que o jornalismo tem sofrido, entre seus leitores/telespectadores/ouvintes, uma perda de credibilidade nos últimos anos. Resultado: ‘Poucas profissões e poucos profissionais têm sido objeto de tanto escrutínio intensivo e tanta crítica escaldante quanto o jornalismo e os jornalistas’, afirma Traquina no livro.
Claro que a crítica ao jornalismo é importante para o desenvolvimento da própria imprensa e da sociedade. O que Traquina propõe, no entanto, é tentar entender o jornalismo para poder abordá-lo. Explica: ‘A compreensão teórica que este manual pretende oferecer aos futuros jornalistas é ver as notícias como uma ‘construção’ social, o resultado de inúmeras interações entre diversos agentes sociais que pretendem mobilizar as notícias como um recurso social em prol das suas estratégias de comunicação, e os profissionais do campo, que reivindicam o monopólio de um saber, precisamente o que é notícia’.
Para chegar a essa definição, Traquina remonta a várias pesquisas sobre jornalismo. Desde os anos 1930, diz ele, esse estudo é realizado nos EUA, com a instituição de cursos de pós-graduação naquele país. Detalha várias teorias formuladas sobre o jornalismo, como a do espelho, a do gatekeeper e a interacionista, entre outras. A do gatekeeper (ou também ‘teoria da ação pessoal’) é, segundo Traquina, a primeira teoria na literatura acadêmica sobre jornalismo. Foi apresentada em 1950 por David Manning White. O termo gatekeeper se refere à pessoa que toma uma decisão numa seqüência de decisões.
Uma parte de Teorias do Jornalismo já foi publicada em outro livro de Traquina no Brasil, O estudo do jornalismo no século XX (Editora Unisinos, São Leopoldo, 2001). Alguns trechos, inclusive, são literais – o que deveria ter sido alertado ao leitor. A revisão da obra, no entanto, comete alguns escorregões. Há muitos erros de português. Começa na capa do livro — “Porque as notícias são como são” — e segue com ‘McCaulay se referiu-se ao’ (pág. 46) e ‘o profissionalismo (…) consistem’ (193). Na página 194, a edição do livro deixa passar a palavra ‘tesão’. ‘Deve mesmo ser ‘tensão’’, justificou-se Traquina a este repórter.
Na entrevista a seguir, feita por e-mail, o acadêmico português fala mais sobre seu livro ao leitor do Observatório da Imprensa.
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Por que é importante estudar teorias do jornalismo?
Nelson Traquina – O campo jornalístico ocupa um lugar central no espaço público das sociedades contemporâneas. Assim, os estudos sobre o jornalismo que refletem sobre a questão por que as notícias são como são podem contribuir para uma análise do seu papel nas democracias. A resposta à pergunta se o campo jornalístico é um campo fechado às ‘vozes alternativas’ ou um campo com autonomia suficiente para assumir um papel próprio no processo de produção das notícias, um recurso social que os diversos atores sociais procuram mobilizar para os seus objetivos, seria um contributo importante para compreender melhor o poder do jornalismo.
Em diversos momentos de sua obra, o senhor chama o livro de ‘manual’. Por quê?
N.T. – Sou da opinião que os saberes técnicos são insuficientes na preparação dos futuros profissionais do campo jornalístico. Freqüentemente é esquecida a importância da teoria. Conceber o jornalismo como um campo, um campo que tem um recurso que é cobiçado por outros atores sociais, nomeadamente, as notícias; que, muitas vezes, os acontecimentos são atos intencionais em que os ‘criadores’ são ‘promotores’; a linguagem de [Harvey] Molotch e [Marilyn] Lester [autores do artigo ‘As notícias como procedimento intencional: acerca do uso estratégico de acontecimentos de rotina, acidentes e escândalos’]; que as notícias são o resultado de processos de interação social, incluindo a interação entre os membros da comunidade profissional. Estes ensinamentos explicam a utilização do livro visto como um ‘manual’.
O senhor apresenta a idéia do jornalismo definido entre dois pólos: o ideológico e o econômico. Na sua opinião, há um equilíbrio entre esses dois pólos no jornalismo praticado hoje? Ou há o predomínio de algum deles?
N.T. – O jornalismo como campo que tem dois pólos dominantes – o pólo econômico (identificado com a idéia-chave que o jornalismo é um negócio) e o pólo ideológico (identificado com a idéia-chave que o jornalismo é um serviço público) – não é [um conceito] meu, mas do sociólogo francês Pierre Bourdieu, exposto no seu livro Sobre a televisão. A tensão entre estes dois pólos é uma constante desde os meados do século 19 nalguns países como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, mais cada vez mais em desequilíbrio a partir dos anos 70 do século 20, devido a múltiplos processos, como 1) a transformação da estrutura econômica das empresas jornalísticas, cada vezes mais partes integradas de empresas mediáticas; 2) a sua crescente internacionalização ou globalização; 3) a desregulamentação selvagem do setor audiovisual em muitos países europeus. Predomina cada vez mais o pólo econômico. Esta associação tem levado à crescente desconfiança do público em relação ao jornalismo, isto é, às notícias. O jornalismo perde credibilidade, o que deve constituir uma preocupação para os profissionais que dedicam a sua vida a esta atividade.
Na sua obra, o senhor coloca bem vários valores que definem o conceito de notícia. Senti falta, no entanto, de uma preocupação sua com a idéia de novidade, ou seja, daquilo que é ‘novo’ para o leitor/telespectador/ouvinte.
N. T. – Este assunto será desenvolvido no volume 2 de Teorias do Jornalismo, que já foi publicado em Portugal com o título A tribo jornalística e que é essencialmente uma sociologia dos jornalistas, com uma exploração da hipótese teórica de que os jornalistas fazem parte de uma ‘comunidade interpretativa’ transnacional, um dos vertentes mais centrais do jornalismo global.
Em Teorias do Jornalismo, o senhor cita a frase de Thomas Jefferson segundo a qual não há democracia sem liberdade de imprensa. Após a releitura dessa frase, fiquei imaginando os EUA de hoje. O governo de George W. Bush tem usado a mídia a favor de suas empreitadas, principalmente na guerra do Iraque. Para isso, utilizou a figura dos jornalistas ‘embutidos’. Depois, para propagar histórias fictícias (como o caso Jessica Lynch). Tivemos o New York Times pedindo desculpas a seus leitores pelo fato de o jornal não ter sido suficientemente crítico às versões oficiais do governo sobre o Iraque. Eu costumo dizer a meus alunos que o jornalismo tem sido manipulado no país que o criou. O que o senhor pensa disso?
N. T. – No quadro teórico das notícias como construção, o resultado de processos de interação social, incluindo as importantes interações sociais entre os jornalistas e as suas fontes de informação, denominados ‘promotores’, as notícias sobre o Iraque constatam como a administração Bush foi o ‘definidor primário’ e dominou o processo de produção das notícias, em parte devido à ‘fraqueza’ das posições alternativas norte-americanos e à demissão da comunidade jornalística norte-americana, muito sensível à questão do seu patriotismo no contexto pós-11 de Setembro. A palavra ‘manipulado’ tem sentido se houvesse ‘mentiras’ – uma questão central da investigação [levada a cabo na BBC] sobre o caso [David] Kelly, na Grã-Bretanha.
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Jornalista