O delator do esquema de espionagem do governo americano, Edward Snowden, promete colaborar com a investigação sobre as ações da NSA (Agência de Segurança Nacional) no Brasil. Para que possa fazer isso, em troca, quer asilo político do governo Dilma Rousseff. A promessa de ajuda está em uma “carta aberta ao povo do Brasil”, obtida pela Folha, que será enviada a autoridades e fará parte de uma campanha online, hospedada no site da ONG Avaaz, especializada em petições.
A ideia é sensibilizar Dilma a conceder abrigo a Snowden, ex-agente de inteligência do governo americano. “Muitos senadores brasileiros pediram minha ajuda com suas investigações sobre suspeita de crimes contra cidadãos brasileiros. Expressei minha disposição de auxiliar, quando isso for apropriado e legal, mas infelizmente o governo dos EUA vem trabalhando muito arduamente para limitar minha capacidade de fazê-lo”, declara na carta, originalmente em inglês.
Snowden se refere à CPI aberta no Senado para investigar as atividades da NSA no Brasil, que incluíram monitoramento de comunicações de Dilma e da Petrobras. Segundo ele, não é possível colaborar diante da precária situação jurídica em que se encontra agora, com apenas asilo temporário, concedido pela Rússia até o meio de 2014. “Até que um país conceda asilo permanente, o governo dos EUA vai continuar a interferir em minha capacidade de falar”, afirma Snowden, na carta.
“Em nome da segurança”
O ex-prestador de serviços para a NSA, que está na Rússia desde junho, reclama de lá ter seus movimentos muito limitados, sem condições de fazer um verdadeiro debate sobre o escândalo, de acordo com Glenn Greenwald, o jornalista para quem ele vazou os dados. No Brasil, com status de asilado permanente, teria mais liberdade para isso.
Snowden toma cuidado, na carta, de não se dirigir diretamente a Dilma. A razão é não melindrar o governo russo, que o hospeda. Mas, ainda de acordo com Greenwald, ele quer vir para o Brasil.
Em junho, Snowden revelou ao jornalista, à época trabalhando para o diário inglês Guardian, documentos que mostram a capacidade do governo americano de espionar cidadãos e empresas em vários países. “Hoje, se você carrega um celular em São Paulo, a NSA pode rastrear onde você se encontra, e o faz. […] Quando uma pessoa em Florianópolis visita um site na internet, a NSA mantém um registro de quando isso aconteceu e do que você fez naquele site. Se uma mãe em Porto Alegre telefona a seu filho para lhe desejar sorte no vestibular, a NSA pode guardar o registro da ligação por cinco anos ou mais tempo”, afirma, na carta.
Segundo Snowden, a vigilância sem critério “ameaça tornar-se o maior desafio aos direitos humanos de nossos tempos”. “A NSA e outras agências de espionagem aliadas nos dizem que, pelo bem da nossa própria segurança – ‘em nome da segurança’ de Dilma, ‘em nome da segurança’ da Petrobras –, revogaram nosso direito à privacidade e invadiram nossas vidas. E o fizeram sem pedir a permissão da população de qualquer país, nem mesmo do deles”, afirma, em outro trecho.
Apátrida
Greenwald, que vive no Rio, e seu namorado, o brasileiro David Miranda, pretendem liderar uma campanha para que Dilma lhe conceda o asilo. Após chegar à Rússia, Snowden enviou pedido a vários países, Brasil inclusive. Mas não obteve resposta. Quem respondeu favoravelmente foram Bolívia, Venezuela e Nicarágua, mas Snowden prefere o Brasil.
“O Brasil é o lugar ideal por ser um país forte politicamente, onde as revelações tiveram um impacto real”, afirma Miranda. O argumento jurídico para convencer as autoridades brasileiras é o de que os direitos humanos de Snowden estão ameaçados. “Se o governo brasileiro agradece a ele pelas revelações, é lógico protegê-lo”, declara Greenwald.
O Brasil, lembra Snowden na carta, foi coautor, ao lado da Alemanha, do texto da resolução aprovada por uma comissão da Assembleia Geral da ONU, em que se associava o impacto da espionagem a violações aos direitos humanos. “Nossos direitos não podem ser limitados por uma organização secreta, e autoridades americanas nunca deveriam decidir sobre as liberdades de cidadãos brasileiros”, afirma ele.
Snowden recorda que a decisão de revelar ao mundo o esquema de espionagem custou sua família, sua casa e pôs sua vida em risco. “O preço do meu discurso foi meu passaporte, mas eu o pagaria novamente. Prefiro virar apátrida a perder minha voz”, declara.
***
Íntegra da carta “ao povo brasileiro”
No texto abaixo, intitulado “Carta Aberta ao Povo do Brasil”, Edward Snowden diz que a reação do país às suas revelações foi “inspiradora”.
“Seis meses atrás, emergi das sombras da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos EUA para me posicionar diante da câmera de um jornalista. Compartilhei com o mundo provas de que alguns governos estão montando um sistema de vigilância mundial para rastrear secretamente como vivemos, com quem conversamos e o que dizemos.
Fui para diante daquela câmera de olhos abertos, com a consciência de que a decisão custaria minha família e meu lar e colocaria minha vida em risco. O que me motivava era a ideia de que os cidadãos do mundo merecem entender o sistema dentro do qual vivem. Meu maior medo era que ninguém desse ouvidos ao meu aviso. Nunca antes fiquei tão feliz por ter estado tão equivocado. A reação em certos países vem sendo especialmente inspiradora para mim, e o Brasil é um deles, sem dúvida.
Na NSA, testemunhei com preocupação crescente a vigilância de populações inteiras sem que houvesse qualquer suspeita de ato criminoso, e essa vigilância ameaça tornar-se o maior desafio aos direitos humanos de nossos tempos. A NSA e outras agências de espionagem nos dizem que, pelo bem de nossa própria “segurança” – em nome da “segurança” de Dilma, em nome da “segurança” da Petrobras –, revogaram nosso direito de privacidade e invadiram nossas vidas. E o fizeram sem pedir a permissão da população de qualquer país, nem mesmo do [país] delas.
Hoje, se você carrega um celular em São Paulo, a NSA pode rastrear onde você se encontra, e o faz: ela faz isso 5 bilhões de vezes por dia com pessoas no mundo inteiro. Quando uma pessoa em Florianópolis visita um site na internet, a NSA mantém um registro de quando isso aconteceu e do que você fez naquele site. Se uma mãe em Porto Alegre telefona a seu filho para lhe desejar sorte no vestibular, a NSA pode guardar o registro da ligação por cinco anos ou mais tempo. A agência chega a guardar registros de quem tem um caso extraconjugal ou visita sites de pornografia, para o caso de precisar sujar a reputação de seus alvos.
Senadores dos EUA nos dizem que o Brasil não deveria se preocupar porque isso não é “vigilância”, é “coleta de dados”. Dizem que isso é feito para manter as pessoas em segurança. Estão enganados. Existe uma diferença enorme entre programas legais, espionagem legítima, atuação policial legítima – em que indivíduos são vigiados com base em suspeitas razoáveis, individualizadas – e esses programas de vigilância em massa para a formação de uma rede de informações, que colocam populações inteiras sob vigilância onipresente e salvam cópias de tudo para sempre.
Esses programas nunca foram motivados pela luta contra o terrorismo: são motivados por espionagem econômica, controle social e manipulação diplomática. Pela busca de poder. Muitos senadores brasileiros concordam e pediram minha ajuda com suas investigações sobre a suspeita de crimes cometidos contra cidadãos brasileiros. Expressei minha disposição de auxiliar quando isso for apropriado e legal, mas, infelizmente, o governo dos EUA vem trabalhando arduamente para limitar minha capacidade de fazê-lo, chegando ao ponto de obrigar o avião presidencial de Evo Morales a pousar para me impedir de viajar à América Latina!
Até que um país conceda asilo político permanente, o governo dos EUA vai continuar a interferir na minha capacidade de falar. Seis meses atrás, revelei que a NSA queria ouvir o mundo inteiro. Agora o mundo inteiro está ouvindo de volta e também falando. E a NSA não gosta do que está ouvindo. A cultura de vigilância mundial indiscriminada, que foi exposta a debates públicos e investigações reais em todos os continentes, está desabando.
Apenas três semanas atrás, o Brasil liderou o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas para reconhecer, pela primeira vez na história, que a privacidade não para onde a rede digital começa e que a vigilância em massa de inocentes é uma violação dos direitos humanos. A maré virou, e finalmente podemos visualizar um futuro em que possamos desfrutar de segurança sem sacrificar nossa privacidade. Nossos direitos não podem ser limitados por uma organização secreta, e autoridades americanas nunca deveriam decidir sobre as liberdades de cidadãos brasileiros.
Mesmo os defensores da vigilância de massa, aqueles que talvez não estejam convencidos de que tecnologias de vigilância ultrapassaram perigosamente controles democráticos, hoje concordam que, em democracias, a vigilância do público tem de ser debatida pelo público.
Meu ato de consciência começou com uma declaração: ‘Não quero viver em um mundo em que tudo o que digo, tudo o que faço, todos com quem falo, cada expressão de criatividade, de amor ou amizade seja registrado. Não é algo que estou disposto a apoiar, não é algo que estou disposto a construir e não é algo sob o qual estou disposto a viver.’
Dias mais tarde, fui informado que meu governo me tinha convertido em apátrida e queria me encarcerar. O preço do meu discurso foi meu passaporte, mas eu o pagaria novamente: não serei eu que ignorarei a criminalidade em nome do conforto político. Prefiro virar apátrida a perder minha voz.
Se o Brasil ouvir apenas uma coisa de mim, que seja o seguinte: quando todos nos unirmos contra as injustiças e em defesa da privacidade e dos direitos humanos básicos, poderemos nos defender até dos mais poderosos dos sistemas” (tradução de Clara Allain).
******
Fábio Zanini é editor de “Mundo” da Folha de S.Paulo