O publicitário que forjou o mote do Repórter Esso, noticioso de saudosa memória, desaparecido do rádio em 31 de dezembro de 1968 – “Testemunha ocular da História” –, certamente não conhecia, ou não acatava, o provérbio russo segundo o qual “Ninguém mente mais do que uma testemunha ocular”. Testemunhas oculares da rebeldia de junho-julho de 2013 – o processo mais importante ocorrido em décadas na sociedade brasileira – foram jornalistas das mais diferentes mídias, convencionais ou não. Da qualidade de seus relatos dependeu o grau de afastamento da realidade que marcou as percepções coletivas dos acontecimentos e suas conexões (as percepções individuais são infinitas e infinitamente discordes entre si). Depende o grau: afastamento houve, em qualquer hipótese.
O trabalho jornalístico é crucial e qualquer exame da situação do país não pode prescindir dele. Mas está longe de resolver sozinho o desafio de entender o que acontece. É preciso analisar e interpretar os fatos. Isso é o que faz de modo muito seguro o utilíssimo livro As ruas e a democracia – Ensaios sobre o Brasil contemporâneo, de Marco Aurélio Nogueira, editado pela Fundação Astrojildo Pereira, do PPS, e pela editora Contraponto. Marco Aurélio é diretor do Centro de Análise de Políticas Públicas e Conjuntura do Instituto de Políticas Públicas e Relações Institucionais (Ippri) da Unesp, parceiro do Observatório da Imprensa e do Instituto CPFL | Cultura no projeto “Ruas em Movimento.”
É um trabalho produzido no calor da hora, o que implica risco de precipitação nos juízos, na percepção de dinâmicas, na historicização. Marco Aurélio, porém, lastreia suas análises em categorias sólidas e nítidas, muito estudo da antigamente chamada realidade brasileira, uma observação atenta dos fatos, interesse em se aproximar da verdade e honestidade intelectual. E escreve bem. Muito bem. Leitor suspicaz: antes de desconfiar que o elogio é ação entre amigos, leia o livro.
Américo Gobbo
Crise e protesto
A primeira questão abordada, no ensaio “Brasil 2013: as vozes das ruas e os limites da política”, é a do sentido das manifestações, suas origens, seu contexto, suas modalidades, seu potencial de transformação política. Marco Aurélio aponta uma crise como cenário em que brotou o “protesto maciço contra as graves deficiências do sistema de prestação de serviços públicos”.
“Crise de representação e de legitimidade – uma crise da política – que vinha de longe e permanecera relativamente adormecida até então.” O autor faz remontar à eleição de Fernando Collor, em 1989, o mal-estar provocado por um sistema que se dissociou da sociedade. Consequência das limitações de um processo de redemocratização tutelado em grande medida pelos militares e por forças políticas, econômicas e sociais a eles associadas.
Sempre é preciso estabelecer um marco temporal para a análise, mas o inventário das frustrações populares pode – deve, talvez – recuar mais. As gerações se sucedem, é indispensável tentar entender o imaginário coletivo das que estão hoje no palco, participaram dos protestos ou os apoiaram, mas não é menos verdade que cada geração herda das anteriores parte substantiva do material com que elabora suas concepções, suas queixas, seus sonhos, suas iras.
40 anos de frustrações
As gerações que participaram da eleição de Collor tinham na memória imediata o fracasso do Plano Cruzado (1986-7), a morte de Tancredo Neves (1985) e a derrota das Diretas (1984). As que as precederam, e assim sucessivamente, em ordem cronológica invertida, ressentiram o longo período transcorrido entre a derrota da ditadura nas urnas (1974) e a entrega (condicionada) do poder aos civis, o AI-5 (1968), o fim das eleições diretas para governadores e a extinção dos partidos políticos da Constituição de 1946 (1965), o golpe de Estado que depôs João Goulart (1964), a renúncia de Jânio Quadros (1961), a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek (1955), o suicídio de Getúlio Vargas como resposta ao cerco político que lhe foi feito (1954), a repressão política e sindical do governo Dutra (1946-50).
De cada processo ou episódio desses se podem aproximar movimentos de trabalhadores ou explosões de fúria popular, não poucas vezes reprimidos brutalmente pela polícia. Também devem ser inscritas no rol das frustrações as eleições vencidas por políticos posteriormente afastados ou cerceados. Cabe adicionar à lista incontáveis episódios de saques praticados por “flagelados” da seca, quebra-quebras em trens, ônibus, barcas, incêndios e repressão em favelas e bairros pobres, episódios violentos de reintegração de posse de terrenos invadidos, revoltas e massacres em prisões, chacinas fora delas.
Uma expressão urbana de insatisfação que não saiu da paisagem desde o início da década de 1980 são as pichações, lembradas pelo jornalista Bruno Paes Manso no debate do “Ruas em Movimento” realizado em 3/12 (ver “Lições esquecidas“).
Com foco temporal mais fechado, não podem ser esquecidos os movimentos de operários de grandes obras, dos quais o mais impressionante ocorreu em março de 2011, na construção da hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, quando 100 ônibus foram queimados e a infraestrutura de um dos dois canteiros de obras foi inteiramente destruída por 10 mil homens enfurecidos.
Também não se pode atribuir exclusivamente à presença de delinquentes o estado de beligerância continuada que vigora entre e nas torcidas organizadas de times de futebol. É mais um entre tantos sintomas de mal-estar.
Ação preventiva antipovo
O pós-Collor é caracterizado no livro As ruas e a democracia como um período em que, depois de se abrir para a sociedade e expelir um “corpo estranho”, as elites políticas, agindo preventivamente, “fecharam o sistema, fazendo com que ele ficasse mais corporativo e mais [na primeira edição está escrito “menos”] refratário às pressões e demandas da sociedade, menos propenso, portanto, a ações reformadoras.”
O diagnóstico que se segue recobre os governos de Fernando Henrique (1995-2002) e de Lula (2003-2010):
“Constrangidos por consórcios multipartidários sem eixo programático e compostos de modo fisiológico, os governos assistiram à desconstrução de seus planos”. Disso decorreu uma “crise sistêmica, que encontra apoio em múltiplos aspectos: econômicos, socioculturais, políticos, éticos, institucionais, governamentais.”
Idêntico é diagnóstico recente de Clóvis Rossi:
“É evidente que a democracia está em dívida com parcelas substanciais de brasileiros, argentinos e latino-americanos em geral” (“A democracia está em dívida“, Folha de S. Paulo, 15/12).
Perversão sistêmica
Marco Aurélio critica a condução da economia desde FHC até hoje. Tratar-se-ia de um modelo econômico que “não promove nenhuma expansão sustentável da economia e, sobretudo, prolonga as bases históricas da subordinação e da vulnerabilidade externa, da acumulação com baixas taxas de investimento e muito voltada para o setor primário-exportador, do predomínio de grandes grupos econômicos e, por extensão, da concentração da renda e da riqueza.”
É de se supor que, sem as medidas de distribuição de renda adotadas desde o primeiro governo Lula, nem teria havido ânimo coletivo a permitir protestos tão grandes e incisivos como os de junho e julho, tese que o próprio governo de Dilma Rousseff procurou colocar em evidência. Isso não impede Marco Aurélio de considerar que “a perversão sistêmica tornou-se mais grave no decorrer dos últimos 15 anos, justamente quando os grupos dirigentes passaram a ser integrados por quadros e políticos do PT. O fato mesmo de terem sido esses grupos a sacramentar a continuidade do modelo econômico e das alianças com os setores dominantes – mediante um arranjo que envolve partidos, sindicatos, associações estudantis, intelectualidade, ONGs e uma miríade de entidades de representação –, bem como a reproduzir as bases do clientelismo, do patrimonialismo e da corrupção, funcionou como elemento adicional de frustração e indignação (…).”
“Transformismo”
Em vez de um “ataque do trabalho contra o capital, o que seria de se esperar em se tratando de um partido de esquerda que chegara ao poder”, viu-se “‘transformismo’, naquele sentido que Gramsci atribuiu ao termo: um método para garantir a realização de um programa limitado de reformas e prolongar a permanência no poder mediante a cooptação de membros da oposição.”
Não era novidade na vida brasileira. A novidade é que “o protagonista da nova onda ‘transformista’ foi precisamente o partido que parecia encarnar a sua mais firme e intransigente crítica. O que era oposição à ‘revolução passiva’ passou a responder por sua gestão e reprodução.”
Após expor mais em detalhe alguns gargalos do “modelo social-desenvolvimentista brasileiro”, Marco Aurélio afirma que, depois de ter tido êxito em postular a condição de “esquerda possível” no Brasil, Lula e o PT revelaram baixa capacidade hegemônica. O PT, “em vez de projeto de hegemonia, organizou um projeto de poder”.
Sem imprensa própria
Não está entre os tópicos abordados no livro, mas é de se perguntar por que o PT jamais encarou seriamente o desafio de ter uma imprensa própria, como qualquer partido ou movimento com pretensão a travar a batalha das ideias. Uma hipótese, que não será explorada aqui, é que o partido de Lula nunca teve a unidade interna indispensável para constituir seus próprios meios de comunicação de massa.
Após a conquista do poder, desde a primeira prefeitura (Diadema, 1982) e escalando sucessivamente as esferas do poder executivo, o PT recorreu crescentemente à publicidade oficial, como qualquer partido “tradicional” brasileiro. A disposição de “fazer como os outros” ficou patente na escolha de Duda Mendonça como marqueteiro da campanha eleitoral de Lula em 2002. À testa do governo federal, o PT esqueceu definitivamente qualquer veleidade de republicanismo no uso de dinheiro público para promover suas ações e intenções.
Acreditaram nas próprias mentiras
A propósito, não seria má ideia o Congresso, as assembleias estaduais e as câmaras municipais discutirem mecanismos de avaliação do uso desse dinheiro para tal finalidade. A propaganda partidária, nem é preciso dizer, continuaria livre de qualquer avaliação, exceto a dos eleitores e a dos guardiães dos preceitos constitucionais que regem a liberdade de expressão. Fica lançada a proposta.
Não se deve excluir que a propaganda oficial, ao convencer seus próprios patrocinadores das fantasias que servia ao povo, os tenha impedido de ver que o Brasil não era de fato toda aquela lindeza vendida em sofisticadas peças publicitárias (esse tema foi abordado neste Observatório em “Fatos levaram multidões às ruas“). A mistificação municipal, estadual e federal voltou às telinhas com toda a força neste final de 2013.
Cenário de crise
A deterioração do quadro decorreu de uma “crise do sistema político” que se aprofundou continuamente, escreve Marco Aurélio. “A corrupção cresceu ininterruptamente. Os governos – todos eles, sem exceção, em Brasília e nos estados – continuaram a exibir falhas graves e desempenho medíocre, tanto em termos de gestão e de políticas públicas quanto em termos de comunicação e diálogo com a população. Os partidos políticos, mais atentos aos apelos do Poder Executivo do que à sociedade, seguiram em frente como associações parasitárias, sem vida e sem ideias.”
Segundo o autor, os governos progressistas brasileiros não conseguiram fugir da fôrma “da modernização autoritária que presidiu o desenvolvimento do capitalismo no país”. E Lula, em particular, “contribuiu para que se mantivesse – em nível superior – a marca histórica desse desenvolvimento: um sistema centralizador, com uma cúpula revestida de grande ativismo decisório e capacitada para assimilar e compor os interesses sociais.”
Não se trata de crítica unilateral ao PT e seus aliados. Uma sucessão frenética de escândalos faz esquecer os que são substituídos nas manchetes. Hoje está em foco o julgamento e a prisão de envolvidos no mensalão – que, como lembrou Fernando Gabeira no O Estado de S.Paulo (20/12), cometeram crimes contra a democracia –, mas há apenas 17 meses foi cassado o mandato de um expoente do denuncismo reacionário, Demóstenes Torres, senador pelo DEM de Goiás, por ter feito lobby a favor do bicheiro Carlinhos Cachoeira, cujo protagonismo e relações com empreiteiras e governantes foi recolhido aos bastidores, para conveniência de poderosos federais, estaduais e municipais.
Marco Aurélio rejeita a teoria conspiratória de que a mídia conservadora teria trabalhado para fazer com que a população se voltasse contra o governo Dilma e o PT. Essa fabulação subestima a “situação social concreta em que se vive” e o “caráter da própria mídia atual, que privilegia imagens, sensações e percepções. E não monopoliza o pensamento e as escolhas das pessoas.”
Questão urbana
O livro descreve brevemente as mudanças por que passou a sociedade brasileira nas últimas décadas:
“Tornou-se mais dinâmica e mais diferenciada, com mais mobilidade social, novas culturas e novas expectativas. Passou a funcionar cada vez mais em rede. Os centros de poder entraram em crise, perderam transparência e força. (…) Há uma revolução em marcha, mas ela não é a dos trabalhadores e a das classes médias. É uma revolução sem revolução, a sociedade ultrapassando o sistema político e pondo em xeque o que está instituído.”
Entra na análise, com toda a força, a questão urbana. O Brasil tem hoje cerca de 83 cidades com mais de 250 mil habitantes. Para comparação, os Estados Unidos, com 300 milhões de habitantes, têm 74 cidades com essa dimensão populacional. O padrão brasileiro de urbanização pode ser considerado, sem nenhum exagero, uma fábrica de aflições. “As cidades aumentaram em tamanho e em problemas”, escreve Marco Aurélio. “Converteram-se em barris de pólvora, ambientes em que tudo é difícil, oneroso e existencialmente pesado. Não foi por acaso que as manifestações de junho eclodiram nas grandes metrópoles: é que nelas se concentram os maiores horrores do Brasil moderno e é nelas que a modernidade se radicalizou.”
Jovens em risco
O autor faz um recorte para mostrar a situação precária dos jovens (40 milhões entre 15 e 24 anos, que, na maioria, moram em cidades). Para começar, cerca de 1,5 milhão de jovens entre 19 e 24 anos não estudam, não trabalham e não procuram trabalho. Trinta por cento dos jovens vivem em famílias com renda familiar per capita abaixo de meio salário mínimo por mês, aproximadamente 53% pertencem ao estrato com renda familiar per capita entre meio e dois salários mínimos e só 15% são oriundos de famílias com renda familiar per capita superior a dois salários mínimos.
Argumenta Marco Aurélio:
“O jovem emerge no espaço público como vítima da violência e da repressão policial, como consumidor e objeto de campanhas publicitárias, não como sujeito. A taxa média de homicídios atinge 28 por 100 mil habitantes, ao passo que os homicídios juvenis alcançam 54 por 100 mil jovens. Os jovens também são as principais vítimas de acidentes de trânsito, respondendo por 26,5% das vítimas fatais e 37% das vítimas não fatais. Do total de mortes juvenis, 17% ocorrem em acidentes de trânsito.”
Opressão
Esses dados, mais, acrescentemos aqui, o sofrimento interminável dos milhões que moram em favelas e periferias pobres, compõem um quadro que surpreendia sobretudo pela ausência da grandes explosões de fúria coletiva. Mais do que qualquer outro elemento – isso não está no livro, mas é convicção do autor do presente texto –, o que explica a calmaria no atacado, contraposta a frequentes espasmos no varejo, é que o país vive em estado de opressão da base da pirâmide social. A violência da polícia não é um “desvio”, não é falta de formação técnica adequada, é instrumento indispensável de dominação.
A polícia, grosso modo, é o que os donos do poder querem que ela seja. E exerce a opressão em condições que lhe são favoráveis: moradias, saúde, educação precárias, salários baixos, vozes pouco ouvidas nos meios de comunicação de massa, como imaginar que os cidadãos criem condições para resistir? Que efeito maior tiveram ao longo dos anos as milhares de manifestações que se limitaram ao fechamento de ruas e estradas com queima de pneus ou outros métodos de protesto?
No Rio de Janeiro, em poucas décadas do final do século 20, centenas de presidentes e diretores de associações de moradores foram assassinados por traficantes ou milicianos, que puseram representantes seus no comando de muitas dessas entidades. A polícia não quis ou não soube impedir esse massacre.
Carro incentivado
Uma combinação de investimento insuficiente em transporte público, dado histórico, com uma mais recente facilitação da compra de automóveis agravou o quadro urbano, em mais de uma vertente, não apenas a da chamada mobilidade urbana. Numa palestra em Brasília, em agosto de 2013 (7o Encontro Preparatório para o Fórum Mundial de Ciência), o professor Elimar Nascimento, da Universidade de Brasília, argumentou:
“O planejamento é importante porque de certa maneira nos conduz a seguir critérios sobre o que queremos ser como nação. E isso, evidentemente, orienta as políticas públicas em geral e a de fomento de ciência e tecnologia em particular. Nossos objetivos nacionais devem ser ter um PIB maior, em crescimento constante, ou melhor qualidade de vida dos brasileiros?
“Alguém pode dizer: não há nenhuma contradição entre os dois. Há. Quando eu retiro tributo da produção do automóvel e aumento o número de automóveis em circulação, eu crio mais estresse, perda de tempo – capital irreversível –, aumento o número de mortes, aumento o custo da manutenção das estradas, retiro dinheiro da saúde em determinados pontos para tratar dos acidentados. Mas eu tenho um aumento do PIB. Agora, se todos nós decidirmos amanhã ter um canteiro para plantar nossas hortaliças, teremos comida saudável, o prazer de receber o amigo com o alface que plantamos, mas o PIB não sai do lugar.”
Sonhos fracassados
Segundo Marco Aurélio Nogueira, “as pessoas foram às ruas não tanto pelo que perderam, mas pelo que não conseguiram obter, por sonhos que fracassaram. Suas reivindicações plurais necessitam, para serem atendidas, de passos grandes e ousados. Nesse ponto, os brasileiros esbarram em sua própria história de ‘revolução passiva’ e ‘modernização conservadora’, que travou o progresso social, oligarquizou a política e legou para o futuro um verdadeiro continente de pobres e excluídos.”
Essa avaliação dá a dimensão dos desafios à frente. Qualquer pessoa que encare com alguma lucidez o panorama brasileiro não poderá fazer prognóstico menos rigoroso. Marco Aurélio toca num ponto crítico: “a questão de saber se a politicidade das ruas pode se compor com a politicidade dos políticos e do Estado.”
Embora as ruas tenham sido “mais políticas do que os partidos, ainda que não tenham se convertido em sujeitos políticos”, elas “não se mobilizam de modo permanente e somente conseguem manter regularidade e se ‘converter em Estado’ se estiverem acompanhadas de sujeitos políticos mais estáveis e capacitados para criar pontes com o Estado e a vida institucional.”
Escrevendo em setembro de 2013, diz o autor que a inquietação nas ruas reaparecerá, porque “a dimensão estrutural dos problemas não sofrerá alteração, ao menos no curto prazo”, mas “o que se ganhou com as jornadas de junho poderá ser diluído se os protestos futuros não trouxerem consigo a superação de sua fragmentação e a formação de subjetividades políticas mais estáveis. Ou se, neles, ganharem maior projeção as orientações neoanarquistas – individualizantes, contrárias à política e à institucionalidade e dispostas ao confronto em nome de uma ‘violência simbólica’ que somente gera caos e desorganização.”
Buscam-se coisas simples
As reivindicações das ruas são resumidas assim no livro:
“Queremos um Estado aberto para as pessoas, menos dependente do capital, desvinculado de multinacionais, bancos e empresários. Mais social e menos econômico. Os jovens que protestaram, no fundo, pediram coisas simples: circulação urbana livre, ampla e irrestrita, ‘mais parques e menos shoppings’; megaeventos só quando indispensáveis, autossustentáveis e culturalmente densos, internet livre, respeito aos direitos de todos e especialmente das minorias, polícia civilizada, perspectiva ambiental, serviços públicos de qualidade e universais. Mais cidadãos e menos consumidores, mais Estado e menos mercado, em suma.”
Os governos têm entretanto grandes dificuldades para responder de modo satisfatório a essas demandas. Entre outros fatores, as instituições políticas não estão capacitadas a fazê-lo, constata Marco Aurélio. O discurso positivo das autoridades “é desmentido cotidianamente pelos fatos”. A necessidade de uma reforma política é maior do que dá a entender a banalização do tema: “A superação da ditadura nos anos 1980 não teve força para ajustar as instituições políticas e impor um novo modo de fazer política, situação que se agravou com as transformações socioculturais ocorridas nas décadas seguintes.”
Em outras palavras do mesmo autor, “o Brasil ainda não construiu a democracia como modo de vida e de organização social fundado na liberdade, na participação e na busca de igualdade social, no qual um Estado republicano cumpre funções reformadoras essenciais.”
O balanço, quando o texto foi escrito, mostrava que o sistema havia retomado o controle da situação, com o governo recuperando o equilíbrio e a iniciativa. A despeito de ter havido novas e significativas manifestações em outubro, a avaliação conjuntural se revelou acertada. Até o presente momento (20/12), pode-se dizer que será preciso esperar 2014 para saber o que foi feito das ruas de 2013.
Análise concreta
Na abertura do ensaio “Depois de junho. Sobre as respostas governamentais”, Marco Aurélio define o que é análise concreta da situação concreta: “trabalho paciente, espírito indagador e disposição metodológica para articular a estrutura e a superestrutura, a sociedade e o Estado, os interesses, as classes, os valores, a correlação de forças, de modo que se alcance uma visão articulada dos fatores e motivações que fazem com que as pessoas tomem partido e ajam, buscando captar ao mesmo tempo suas implicações e possíveis repercussões.”
Tarefa que cumpre com brilhantismo em As ruas e a democracia.
Sobre a mídia
Entre os demais ensaios do livro há um, esclarecedor, dedicado ao tema “Mídia, democracia e hipermodernidade”, muito útil seja em termos de atualidade, seja porque seu tema é precipuamente o deste Observatório. Ele será examinado em tópico posterior.
Livro em debate
Em debate no dia 13 de novembro com Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política da USP, prefaciador do livro, e Matheus Pichonelli, editor do portal da Carta Capital, Marco Aurélio definiu As ruas e a democracia como uma “parada estratégica para abastecer a cabeça”, sugerindo “o que foi, o que não foi e o que ficou” do “grito de angústia coletivo contra o modo de vida urbano do início do século 21”, uma expressão do “repúdio à política e seus operadores e contra a má qualidade das políticas públicas”.
Seu efeito político mais importante terá sido incomodar os governantes, mas, tendo em vista a péssima reação do sistema político, que “não estabeleceu um canal com as ruas” – embora o governo Dilma, especificamente, tenha agido nessa direção –, é possível que tenha sido perdida uma oportunidade de mudar a política brasileira. Em todo caso, educação, saúde e transporte são temas inocultáveis. Marco Aurélio disse que as polarizações eleitorais entre PT e PSDB emburrecem o país.
Batalha semântica
Pichonelli relatou as dificuldades postas à cobertura jornalística das manifestações: “Ninguém estava entendendo o que estava acontecendo, havia uma batalha semântica e produzir entendimento era muito arriscado”. O jornalista acha que a imprensa pecou muito na descrição das coisas. Deu como exemplo o convite feito pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, para que uma integrante do Movimento Passe Livre (MPL) fosse conversar com ele na prefeitura em tête-à-tête. “Ela, evidentemente, não aceitou, e isso foi interpretado como recusa ao diálogo.”
Contrapôs à modernidade líquida proposta por Zygmunt Bauman as “respostas no campo sólido” que continuam sendo dadas pela política. Na visão de Pichonelli, não foi por acaso que o grito coletivo passou pelos transportes: “Viu-se que não havia mobilidade”, enquanto “empresas lucram com um sistema que tolhe anseios.” E citou o dado de que 37 milhões de brasileiros não têm acesso a transportes por falta de dinheiro. O jornalista elogiou o livro, que “dá espaço para que as perguntas sejam formuladas”. Considerou “ato de coragem estruturar num livro uma análise do que aconteceu.”
Falsa hegemonia
Janine citou os bordões “A mágoa mata mais” e “Mais amor, por favor” para ilustrar a ideia de que “toda grande mudança social envolve algo que não era demandável”. Em relação ao balanço dos últimos anos, disse que “o PT tornou irreversível a inclusão social”, mas apontou o risco de se eternizarem medidas de emergência.
Segundo Janine, o que se viu foi algo de muito promissor, apontando para se conquistar o que falta para a consolidação da democracia brasileira. As manifestações, entretanto, esqueceram os resultados obtidos desde o fim da ditadura.
Janine também se referiu ao PT e ao PSDB, que em sua opinião promovem uma “briga fratricida entre os melhores partidos do país.” Ele mencionou o que considera os feitos dos três maiores partidos: “o PMDB lutou contra a ditadura, o PSDB conteve a inflação e o PT promoveu a inclusão social.” Disse que houve um “esgotamento da agenda da inclusão social no imaginário, não no real.”
Referiu-se a uma situação de “hegemonia imperfeita” em decorrência de a) a política brasileira ter pouca densidade cultural; b) os partidos brasileiros não terem tido competência para criar instrumentos de hegemonia; c) muitas vezes se conceber hegemonia como poder eleitoral. Disse que o PT “trocou a verdadeira hegemonia pela falsa hegemonia”.
“No mundo atual, as políticas públicas são o tema da hegemonia”, definiu, “e a batalha hegemônica é construir um relacionamento social que harmonize a questão das políticas públicas.” Como PT e PSDB não se preocupam com a hegemonia, “talvez predomine a hegemonia neoliberal.”