Uma vez fiz uma escala em Las Vegas e dormi lá. O hotel em que me hospedaram era um cassino, um cassino transcontinental. No final da tarde, tive que cruzar, por algum motivo, o espaço do cassino propriamente dito. Fui buscar um copo d’água, comprar uma barra de chocolate, ou tinha de ir ao outro lado do edifício para ver alguma coisa no estacionamento. Não lembro mais o motivo que me fez empreender a travessia. Mas eu me lembro da cena. As máquinas de videopôquer, desligadas, perfiladas e mortas sobre o mofo do carpete infecto.
Eram três máquinas paradas. Depois eram seis. Eram dez. Eu andava pelos corredores e elas eram incontáveis. Eram muralhas de máquinas de videopôquer, uma fileira depois da outra, tantas que me pareceram centenas.
Mais à frente vinha o descampado reservado à roleta e mais outras engrenagens do jogo. Eu caminhava a passos rápidos, guiado pelas poucas funcionárias, moças com coletinhos pretos sobre camisas acetinadas, calças compridas, crachás. Elas patrocinavam a servidão de passagem de que eu me servia. Fora isso, aquele era um lugar não estava aberto ao público. Aquele era um lugar inexistente. Mais um pouco e a multidão o invadiria, como numa enchente.
Lazer fabril
Foi então que aquele cassino me pareceu uma fábrica vazia – e aí começa a minha história. Eu passeava por uma fábrica vazia. Eu olhava para o cassino parado e via uma fábrica. Não importa por que o cassino estava fechado àquela hora. Seria o horário de manutenção? Um descanso semanal dos motores? Hora da faxina semanal?
Cassino? Eu disse cassino? Corrijo. Era uma fábrica. Eu olhava e via, cada vez mais, a fábrica. Não, aquilo não era um parque para adultos, um centro de lazer e jogatina. Era uma fábrica a espera dos operários. Atrás das portas imensas, lá na parede do outro lado, poderiam estar os relógios de ponto para que os trabalhadores carimbassem seus cartões.
Inertes, as máquinas ao meu lado não eram capazes de produzir riqueza. Por isso eram uma fábrica. Elas precisavam da força humana para se mover, para que as moedas tilintassem, as sirenes zunissem, as luzes piscassem. Só assim elas produziriam mais magnetismo, mais visibilidade para seus signos, mais corpos humanos para movê-las, mais desejo para idolatrá-las, mais olhar para amplificá-las, mais… valor.
Logo mais, aquele imenso chão de fábrica iria acender as suas luzes.
Aí, viriam os proletários. Eles viriam salivando, aquele chão iria virar um formigueiro, fervilhando de proletários. Proletários inusitados, proletários jogadores, mas proletários. Naqueles minutos entendi que são proletários os jogadores que fazem funcionar os cassinos.
Com algumas particularidades, eu sei, mas são proletários. Em vez de vender sua força de trabalho para o dono das máquinas, eles pagam, veja que coisa, eles pagam como se comprassem fragmentos de prazer que imaginam extrair daqueles caixotes de metal e vidro. Pagam e adquirem o formidável direito de entregar seus músculos e suas energias vitais àquela linha de montagem subterrânea, naquele porão sem janelas, sem nada que deixe o sujeito saber se, do lado de fora, é dia ou é noite.
Os vigilantes, aqueles que iriam chefiar os operários que estavam do lado de fora, já se preparavam para abrir as comportas. Aquilo quase tinha um ar de escritório de contabilidade com uma decoração de motel.
Logo depois, a multidão em tropéis disputaria faminta os postos de trabalho (digo, de diversão) a partir dos quais faria girar os meios de produção (de prazer), os meios de produção (de vício), os meios de produção de papel moeda.
Como se fosse uma fábrica.
Essa idéia ficou comigo. A imagem que eu tinha da fábrica, uma imagem fixa, deslizara para o lugar da imagem do cassino. Eu olhava para o cassino e não conseguia mais ver cassino. Via apenas fábrica. Tanto a idéia ficou comigo que, horas mais tarde, desci para ver as pessoas jogando (digo, trabalhando) e para ver se eu mudava de idéia (digo, de imagem). Eu olhei para elas, atentamente, e o que eu vi foi exatamente isso:
Elas trabalhavam sem descanso, sem trégua, sem mais remédio. Elas iriam passar horas ali, dias, se deixassem. Além de depositar o suor nos comandos daqueles meios de produção, deixariam também dentro das engenhocas as suas economias. E sairiam contentes, realizadas, bêbadas, cansadas, mais pobres, mais gastas.
Há conclusão possível?
Claro, a história do cassino é apenas uma síntese. Talvez metafórica. A indústria do entretenimento é isso. Exatamente isso.
Ela soube elevar a alienação a uma forma suprema de gozo e transformou o chamado tempo de lazer em tempo de trabalho concentrado. A imagem da linha de montagem como um moedor de corpos e consciências é pré-histórica. Você viu o Carlitos em Tempos Modernos, naturalmente:
Lá está ele, digo, lá estava ele, todo importante porque tinha um emprego e pensava que comandava as engrenagens, sem perceber que estava dentro delas. Lá estava ele na cartilha demasiadamente literal de Charles Chaplin, transformou Hegel e Marx em pastelão para crianças. Pois aquilo, que era tão fácil, agora é pré-história. As fábricas são pré-históricas – aquelas fábricas, mas não todas as fábricas.
Alguns acreditam que as fábricas perderam terreno para os ‘serviços’, dizem que estamos em um tempo ‘pós-moderno’ ou ‘pós-industrial’, mas não viram que todo o resto, todo o lado de fora da fábrica, tudo aquilo que parecia pertencer ao ‘tempo livre’ se estruturou como atividade fabril – e febril.
O divertimento virou um modo de produção e foi por aí, por essa indústria do imaterial, que as vias da acumulação se destravaram.
A diversão é o iPod do povo.
Jogue o seu game e você moverá mais engrenagens. Ouça o seu MP3 e você moverá engrenagens. Assista na TV ao seu jogo de domingo à tarde, cerveja na mão, e moverá as engrenagens. Não vale dizer que o cinema falado é o grande culpado da transformação. Não vale fazer greve contra a energia elétrica. Sonhe o seu sonho mais doce de felicidade e verá que ele já é uma espécie de mercadoria. Pois então sonhe – pois, sonhando, você moverá as engrenagens.
Ah, sim, e antes que você alegue que isto aqui não tem nada a ver com imprensa, eu aviso, com um alerta que rima: você é que pensa.
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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007