Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A velha rotina das enchentes

Véspera de Natal, e mais uma vez, como em todos os anos, os jornais anunciam o período das enchentes, das enxurradas, dos desabamentos. As imagens são tão corriqueiras que se poderia repetir fotografias de anos anteriores e poucos leitores se dariam conta.

Junto com as reportagens, segue a costumeira lamentação de especialistas sobre a falta de planejamento, a incúria de autoridades e a falta de critério daqueles que constroem suas casas em lugares instáveis.

A revista Época que circula nesta semana traz entrevista com o premiado arquiteto americano Thom Wayne, para quem as grandes cidades devem ser pensadas como países, porque cresceram ao ponto de exaustão, e juntam uma quantidade e uma diversidade de pessoas impossíveis de administrar pelos meios tradicionais de planejamento. Para ele, o importante é organizar os vínculos sociais, mas os arquitetos e outros profissionais que administram os aglomerados urbanos pensam na estética e nas conveniências presentes.

O texto é interessante por colocar em debate propostas avançadas para o conceito de ambiente ecologicamente adequado, mas passa a anos-luz dos problemas que os brasileiros enfrentam para viver em suas cidades.

Uma das questões das pautas sobre a vida urbana é que elas quase sempre se restringem às metrópoles, enquanto as cidades médias se expandem aceleradamente, sem que seu destino seja colocado em discussão. É nesses lugares que se encontram em gestação os problemas do futuro próximo. O risco das enchentes é apenas um deles, mas é uma constante em muitas regiões do Brasil, repetindo-se nas cidades de todos os portes.

Na terça-feira (24/12), os jornais registram seis mortes e 46 mil pessoas desalojadas no Espírito Santo, onde metade dos município se encontra em estado de emergência. Em Minas Gerais, as chuvas já provocaram 15 mortes e no Rio de Janeiro o sistema de defesa civil entrou em alerta. Os números são agravados pelo aumento dos acidentes nas rodovias, parte deles associada às más condições climáticas.

A música e a política

Em São Paulo, a Câmara Municipal publicou recentemente uma revista que procurava registrar os debates sobre a revisão do Plano Diretor Estratégico da cidade. A edição junta entrevistas com músicos que atuam na cena paulistana e textos dos vereadores sobre sua visão de como deveria ser a vida urbana.

À primeira leitura, parece mais um desses projetos elaborados para dar visibilidade e massagear os egos dos parlamentares. Mas o encontro de artistas com os políticos rende um olhar diferente daquele que normalmente é oferecido pelos urbanistas, e daí se pode compreender outros aspectos da complexidade de uma cidade grande. Por exemplo, a necessidade de organizar o comércio ambulante acaba afetando a vida dos músicos de rua, e com isso muitas expressões da cultura popular vão sendo empurradas para os guetos, onde tendem a desaparecer.

O depoimento da pianista Giovanna Maira, cega desde um ano de idade, mostra como a cidade ainda oferece poucas condições para pessoas com deficiência. O rapper Gidean Silva, conhecido como Panikinho, relata como se consolida a cultura do hip-hop na periferia da cidade, e de como os problemas da mobilidade urbana contribuem para marginalizar o jovem da periferia.

O noticiário sobre as chuvas que anunciam o verão coloca em evidência uma cidade despreparada para os eventos climáticos que prometem ser cada vez mais extremos, mas por outras fontes se pode vislumbrar um cenário no qual a maioria dos moradores ainda luta para se adaptar a uma cidade cuja hostilidade se manifesta todos os dias do ano.

As estatísticas dos mortos e desabrigados se parecem cada vez mais com os relatos das baixas nas grandes guerras, como um fato inevitável da vida urbana.

Não deveria ser assim. As reportagens dos jornais não podem simplesmente registrar as perdas de vidas e de patrimônios, sem colocar em debate questões mais amplas do que a instabilidade geológica dos morros, a insensatez de construir nas várzeas dos rios e a falta de fiscalização.

Os dramas se repetem porque suas vítimas são anônimas. A mídia e os especialistas olham as construções, as grandes estruturas, mas parecem esquecer que elas são feitas para abrigar pessoas.