Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Conversa fiada

Fim de ano, listas & resoluções. Lista disso e daquilo, de melhores e piores; resoluções para o ano entrante e geralmente proteladas para o ano seguinte, como as de Bridget Jones. Aqui neste armarinho de miudezas espirituais, folgo em dizê-lo, vocês estarão a salvo de melhores e piores, pelo menos dos meus melhores e piores. Já gostei desse passatempo, até porque passei boa parte da vida fazendo crítica de cinema; e a lista dos melhores filmes do ano é uma espécie de Juramento de Hipócrates dos críticos de cinema.

Adolescentes adoram esse esporte e se autoafirmam praticando-o, tenham 15 ou 60 anos de idade. Devia andar ali pelos 14 quando cometi minha primeira lista; da última nem me lembro mais em que década a perpetrei. Cansei de hierarquizar heterogeneidades e, principalmente, de ver filmes ruins, a maioria dos quais costumo eliminar pelo trailer. De mais a mais, tenho absoluta certeza de que a minha opinião de “especialista” hoje nada significa, é um pingo d’água no oceano de palpiteiros aboletados na internet. O único balanço de filmes consequente é o que leva em conta o rendimento nas bilheterias. O resto é mero jogo de salão.

Por que gostamos tanto de relacionar coisas: preferências, carências e urgências? Como é que no córtex pré-frontal essa propensão taxonômica se processa? Dizem que fazer e consultar listas é terapêutico, ajuda a diminuir a ansiedade. O ansiolítico de Proust era a leitura da programação dos trens do interior da França, com seus respectivos horários. Como de minha insônia só Stilnox consegue dar conta, a leitura de certas listas pode até ter efeito contrário. Os constantes inventários de Susan Sontag, em seus diários e no primeiro conto (“Projeto para uma Viagem à China”) de I, Etcetera, podem provocar muxoxos e irritação, mas estupefacientes não são.

Até prova em contrário, a lista de predileções mais popular de todos os tempos é a do escritor Isaac Davis, personagem de Woody Allen em Manhattan. Refestelado num sofá, o personagem relaciona ao microfone de um gravador as dez mais preciosas (ou indispensáveis) dádivas culturais do século passado. Justamente por ser tão manjada (o filme vive sendo reprisado na TV), abstenho-me de aqui repeti-la, mas não de levantar a suspeita de que aquela cena inspirou o primeiro livro sobre as coisas que precisamos ver antes de morrer, há tempos uma praga editorial sem fronteiras.

Crítica sutil

Umberto Eco historiou o fenômeno num livro enciclopédico, adrede intitulado A Vertigem das Listas (Record), pois é mesmo vertiginoso o nosso fascínio (e o dele em particular) por compilações e classificações. Esbanjando sua costumeira erudição, Eco perpassa todas as formas de manifestação artística submetidas à humana sanha de contar, relacionar, juntar e anexar objetos e desejos: dos mosaicos medievais com suas massas de anjos às assemblages de Joseph Cornell, passando pelos rostos vegetalizados de Giuseppe Arcimboldo e, já no campo das letras, pelos demônios (Aamon, Abigor, Abracace, Adramelec… Xafan, Zagam, Zaleos, Zebos, Zepar) que o oitocentista J.A.S. Collin de Plancy recenseou em seu Dictionnaire Infernal.

Interromper a narrativa para listar gente e objetos não foi uma invenção da literatura modernista ou pós-modernista, um gimmick ou uma afetação de Borges, Georges Perec e Thomas Pynchon. Muito antes de Cervantes, Homero, o pai de todos, já havia apinhado o segundo Canto da Ilíada com um rol interminável de naus e seus respectivos comandantes. Joyce faria algo parecido em sua recriação da Odisseia, relacionando um extensíssimo elenco de heróis e heroínas irlandeses da antiguidade, no capítulo 12 de Ulisses.

Fitzgerald, bem afinado com o espírito da época (vide Gertrude Stein e suas “descrições de literatura”), se amarrava em listas. A dos visitantes da mansão de Jay Gatsby, no verão de 1922, foi inventada, mas não a das ziquiziras do escritor, pacientemente arroladas por escrito e exibidas aos amigos mais chegados como um currículo digno de admiração. Uma delas o acabou matando.

Ainda não li, nem sei quando irei gramar as mil e tantas páginas de Infinity Jest (A Piada Infinita, na tradução portuguesa), de David Foster Wallace, mas, se e quando isso ocorrer, já estarei familiarizado com os surtos classificatórios do finado autor. Só a filmografia do fictício cineasta James Orion Incandenza ocupa oito páginas do romance, acrescidas de notas de rodapé. Outra ficção consagrada pela crítica, The Hundred Brothers, de Donald Antrim, é quase seis vezes mais curta, mas o leitor tem de enfrentar de cara a relação completa dos 100 irmãos do narrador, todos nascidos em 23 de maio, em anos diferentes, claro; um deles, por sinal, meu xará e companheiro de profissão.

Poderia levar essa lereia por mais alguns parágrafos e digressões; no entanto, encurtarei a conversa em respeito à paciência dos que me aturaram até aqui, não sem antes fazer um pit stop em Italo Calvino. É de sua autoria a mais saborosa e irônica lista já posta num romance, a bem dizer, um metarromance, um roman en abîme, se me permitem outro pernosticismo. Se Um Viajante Numa Noite de Inverno (traduzido pela Companhia das Letras) começa com um bordejo por entre as estantes e mesas de uma livraria, onde as mercadorias são divididas em categorias inventadas pelo autor-narrador. São “hectares e mais hectares de Livros Cuja Leitura É Dispensável, os Livros Para Outros Usos Que Não a Leitura, os Livros Já lidos Sem Que Seja Necessário Abri-los, pertencentes que são à categoria dos Livros Já Lidos Antes Mesmo de Terem sido Escritos.”

E nesse tom segue Calvino por quase duas páginas, até alcançar o que chama de “as torres do fortim”, ou seja, os livros que há tempos pretendia ler e em vão procurou durante anos ou dizem respeito a algo que o ocupa neste momento ou deseja adquirir para ter por perto em qualquer circunstância. É uma crítica sutil à política dos livreiros, que reservam seus espaços mais nobres para quem já não precisa deles para chamar atenção.

******

Sérgio Augusto é colunista do Estado de S. Paulo