Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo investigativo na era digital

Segundo a Unesco, jornalismo investigativo é a especialidade do jornalismo que busca a revelação de matérias que são ocultadas deliberadamente por alguém em uma posição de poder, ou acidentalmente, por trás de uma massa caótica de fatos e circunstâncias – e a análise e exposição de todos os fatos relevantes para o público. Dessa forma, o jornalismo investigativo contribui de forma crucial para a liberdade de expressão e para o desenvolvimento da mídia.

Jornalistas investigativos buscam descobrir fatos e produzir reportagens que venham a expor desperdícios, irregularidades, má gestão, fraudes, conflitos de interesses e abusos de autoridade. Um dever fundamental do jornalista, e mais particularmente do jornalista investigativo, é o de servir ao interesse público, agindo como um cão de guarda de órgãos do governo, de negócios, de educação, de saúde, de meio ambiente, de segurança e outras instituições. Por essa razão se diz que o jornalismo investigativo é indispensável para a democracia, na medida em que ele tem o papel de propiciar ao público o conhecimento e os fatos a respeito do modo como as instituições importantes em nossa sociedade operam, permitindo assim que os cidadãos possam estar plenamente informados.

Com as grandes e recentes transformações nas tecnologias da informação e da comunicação, haveria uma crise na indústria da mídia que estaria ameaçando a sobrevivência do jornalismo investigativo?

Ferramentas de código aberto

Em palestra proferida em abril de 2012 (“Investigative Journalism in the Digital Age”), Iain Overton, fundador e editor da ONG “Bureau of Investigative Journalism”, argumenta que, apesar da grande discussão no contexto global, a “crise” no jornalismo investigativo, supostamente devida ao impacto da mídia digital, num certo sentido diz respeito a apenas uma parte de uma crise maior no jornalismo tradicional como um todo.

A proliferação de novos meios de comunicação baseados na internet na forma de blogs, jornais online, redes sociais etc., e a facilidade de reprodução de conteúdo, resultou numa queda acentuada e persistente na receita (de vendas e anúncios) de grandes e tradicionais jornais em todo o mundo. Essa queda aparece refletida num declínio que vem ocorrendo há algum tempo nas vendas de jornais com apenas uma pequena porcentagem de material original, mesmo em veículos mais tradicionais, o que implica muito menos dinheiro e investimento para o jornalismo investigativo. A percepção predominante é a de que esta última é sempre uma atividade cara, dada a sua intensidade de trabalho e o grande número inevitável de “becos sem saída”. Como se não bastasse, os custos dessa atividade para os jornais tradicionais têm consistentemente aumentado, sem falar no custo do risco de processo por difamação, por exemplo.

Por outro lado, é nítida a disrupção na indústria da mídia provocada por diversas inovações em tecnologias da informação e de comunicação, muitas delas causando uma redução drástica nos custos associados ao jornalismo investigativo. Por exemplo, o jornalista investigativo dos dias de hoje pode ser dono de suas próprias produções e não depende tão fortemente de uma grande equipe de suporte técnico, pois são muitas as oportunidades “multi-plataforma” para divulgar mais ampla e seguramente suas estórias de interesse público, com o benefício adicional de poder receber o feedback imediato do seu leitor. Além disso, são muitas as ferramentas digitais abertas e de código aberto que servem para acelerar certos tipos de investigação, tais como web-scraping e software para encontrar links na “nuvem de documentos”. O próprio portal da WikiLeaks veio para mudar definitiva e radicalmente a atividade de whistleblowing e, consequentemente, de proteção às fontes, fundamental para o sucesso de uma investigação.

Mudanças tecnológicas

Em debate realizado em 22/10/2013 no London Press Club em parceria com a ONG YouGov (“Can investigative journalism survive?”), algumas das principais figuras do jornalismo britânico, entre eles Alan Rusbridger, editor-chefe do The Guardian, Andrew Gilligan, premiado jornalista investigativo (“Jornalista do Ano” em 2008) e editor do The Daily Telegraph, e Heather Brooke, destaque do jornalismo-cidadão e responsável pela revelação de um grande escândalo recente envolvendo gastos excessivos de parlamentares britânicos, chegam à conclusão quase unânime que, apesar de diversos fatores contrários, o jornalismo investigativo sobreviverá. Organizado imediatamente após a divulgação dos resultados de um levantamento com um universo de 1019 cidadãos britânicos e 788 formadores de opinião de 20/09 a 07/10/2013 sobre o impacto do jornalismo investigativo na sociedade britânica, o debate ocorreu sob a constatação de que apenas 49% dos entrevistados concorda que “o público ainda está verdadeiramente interessado no jornalismo investigativo”, embora entre os formadores de opinião esse percentual tenha atingido 71%. A pesquisa revelou também que o público concorda que o declínio do investimento e da qualidade jornalística, o ciclo de notícias 24h, e o foco editorial no curto prazo têm exercido um impacto negativo.

Com a autoridade de quem é editor-chefe de uma organização jornalística com um histórico recente invejável em termos de serviços prestados ao público como The Guardian (vide WikiLeaks e Assange, NSA e Snowden), Alan Rusbridger demonstra otimismo quanto à sobrevivência do jornalismo investigativo, mesmo em face de inúmeros obstáculos, entre eles o financeiro e o legal. (Vale lembrar que alguns dos grandes baluartes do jornalismo do Reino Unido têm sido enfáticos em demonstrar receio quanto à crescente ameaça de legislação cedendo maior controle da mídia ao governo.) Entre esses formidáveis obstáculos, Rusbridger chama a atenção para o surgimento de um novo competidor representado por organizações e/ou grupos de indivíduos que, com o apoio de novas tecnologias, aparecem como defensores do cidadão comum e da transparência contra governos, corporações e regimes opressores e autoritários: trata-se do que está sendo chamado de “O Quinto Poder”, que tem como representantes mais ilustres as figuras de Julian Assange, os Cypherpunks, Edward Snowden, e Glenn Greenwald.

Em sua intervenção no debate, Andrew Gilligan argumenta que o aspecto financeiro de uma suposta crise no jornalismo investigativo está sendo supervalorizado, no mínimo por duas razões. Primeiro, mesmo num mercado que cada vez se encolhe mais, jornais tradicionais como The Times e The Daily Telegraph têm publicado mais, e não menos, matérias de jornalismo investigativo. Segundo, as mudanças tecnológicas têm feito com que o jornalismo investigativo fique muito menos custoso que há pouco tempo atrás por várias razões, entre elas: (1) boa parte das “buscas” que levam a furos de jornalismo investigativo tem sido feita à distância, via internet, e, portanto, não exige a busca in loco; (2) a participação do cidadão através do crowdsourcing, do whistleblowing virtual e do jornalismo cidadão tem sido fundamental em alguns dos grandes casos de sucesso do jornalismo investigativo.

“Liberdade de expressão em crise”

Além do uso de multi-plataformas de divulgação conforme mencionado anteriormente, ao jornalista investigativo estão disponíveis ferramentas de “marketing viral” assim como de “jornalismo gonzo”, tudo isso com vistas ao objetivo maior de garantir ao cidadão o conhecimento e o acesso a informações de interesse público. Lembrando que teve que fazer uso de uma identidade fake num dos casos mais importantes que lhe garantiu a premiação máxima do jornalismo britânico, Gilligan confessa que o “jornalismo investigativo não pode sempre ser gentil, não pode ser sempre respeitoso, às vezes tem que usar métodos, às vezes tem que produzir resultados”.

A bem da verdade, as tecnologias digitais chegaram para mudar a cara do jornalismo investigativo, não apenas no sentido de facilitar o acesso a informações “protegidas” por entidades poderosas, mas também para garantir a proteção às fontes jornalísticas, reduzir custos de investigação e de coleta de informações, além de propiciar mais segurança e anonimato aos próprios jornalistas. Resta ao jornalista investigativo buscar as ferramentas tecnológicas mais convenientes e eficazes para levar a cabo sua missão num mundo de “liberdade de expressão em crise”, conforme a temática de abertura da Conferência Global de Jornalismo Investigativo, reunindo o 8º Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a 8ª Global Investigative Journalism Conference e a 5ª Conferencia Latinoamericana de Periodismo de Investigación (Colpin), realizados no campus da PUC-Rio de 12 a 15 de Outubro de 2013.

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Ruy José Guerra Barretto de Queiroz é professor associado do Centro de Informática da UFPE, e Dayane Albuquerque, mestranda, Centro de Informática da UFPE