Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Snowden fez um favor ao mundo e merece asilo

Diversos críticos americanos de Edward Snowden gostam de compará-lo desfavoravelmente a Daniel Ellsberg, 82, o mais famoso ativista que, antes dele, também vazou dados e constrangeu um presidente americano.

Ellsberg não fugiu do país e enfrentou a Justiça (e o assédio do governo), logo após vazar um estudo revelador sobre a Guerra do Vietnã, apelidado de “papéis do Pentágono”, a 18 jornais americanos em 1971.

A crise que encerraria a guerra e terminaria por derrubar o governo de Richard Nixon começou com ele.

Ellsberg detesta ser usado nos ataques a Snowden. “Se fosse hoje, eu teria feito o mesmo que ele, também teria fugido”, diz. “O país em que denunciei Nixon era bem diferente de hoje”.

Em entrevista exclusiva à Folha, Ellsberg, 82, diz que “democracia não é compatível com governos que conheçam cada comunicação, cada transação com cartão de crédito, cada mensagem celular de seus cidadãos” e defende que o Brasil conceda asilo a Snowden.

Snowden agiu errado ao ter fugido para a China e para a Rússia e não ter enfrentado as consequências, como o senhor fez em 1971?

Daniel Ellsberg – O país em que eu decidi ficar e enfrentar a Justiça era muito diferente. A Suprema Corte tinha vários juízes que garantiam as defesas da liberdade de expressão e de imprensa.

Obama já usou mais vezes a Lei de Espionagem para perseguir quem denuncia do que todos os outros presidentes anteriores.

Fui indiciado, mas duvido que eu fosse condenado por aquela Suprema Corte. O país mudou muito, rumo à direita, em minha opinião.

Fugir era a única alternativa?

D.E. – Snowden pôde ver o que fizeram com Chelsea Manning [ex-Bradley Manning], colocada em uma solitária por nove meses. Manning jamais foi entrevistada por um único jornalista sequer. A imprensa não teve acesso a ela. No repertório da ONU, o que fazem com Manning é um tratamento cruel. Seria tortura, na minha opinião. Snowden aprendeu que precisava estar fora do país para fazer o que fez. No lugar dele, eu teria feito o mesmo.

O Brasil deveria conceder asilo a Snowden?

D.E. – Seria admirável se o Brasil concedesse asilo ao Snowden. O mundo precisa agradecer a esse rapaz. O sonho dele seria poder voltar ao seu paraíso, o Havaí, mas acho que ele passará a sua vida no exílio. Não vejo chance de perdão presidencial aqui.

Ele fez um grande sacrifício. Snowden corre risco de morte em qualquer lugar, talvez menos na Rússia, mas acho que ele gostaria de estar em um lugar mais democrático e aberto.

Mas o Brasil não sofreria retaliações dos EUA?

D.E. – Não é fácil antagonizar o país mais rico e poderoso do mundo. Muitos priorizam a relação com os EUA.

O Brasil poderia sofrer sanções. Mas nenhum país tem direito de fazer espionagem total sobre as comunicações privadas dos cidadãos no resto do mundo.

Snowden fez um favor ao mundo, muito além da espionagem.

Qual?

D.E. – Democracia não é compatível com governos controlando e conhecendo cada comunicação pessoal, cada transação de cartão de crédito, cada e-mail, cada mensagem de celular. Essa informação pode ser usada para chantagens, com fins políticos e comerciais.

O Brasil, por exemplo, não é uma ameaça à segurança dos EUA, assim como não o é a comunicação pessoal de Angela Merkel. Esses usos nada têm a ver com terrorismo.

O presidente Obama deve anunciar na sexta-feira [17/1] as mudanças na espionagem da NSA (Agência Nacional de Segurança dos EUA). O que o senhor espera que mude?

D.E. – Acho que Obama divulgará só mudanças cosméticas na espionagem. Não espero grande reforma de princípios. Presidentes não gostam de reduzir poderes. O Congresso e a Justiça deveriam contrabalançar, mas não estão cumprindo esse papel.

Após os ataques de 11 de Setembro, os EUA precisaram reforçar muito a segurança. Como conciliar essa necessidade com a privacidade?

D.E. – O 11 de Setembro serviu para muitas coisas. Para invadir o Iraque, para um governo mentir ao Congresso, que é outra violação da Constituição. Não me surpreende que Obama não tenha mudado ou voltado atrás nos abusos de poder da era Bush-Cheney. Tivemos tortura, espionagem, e o Congresso e o público são culpados em aceitar esses abusos.

Um certo grau de vigilância é necessário. Há perigos obviamente maiores por conta do terrorismo, mas especialistas não acham necessária tanta coleta de dados. Essa escala absurda de monitoramento faz o trabalho deles ser até mais difícil.

Senadores e deputados democratas e republicanos dizem que os EUA estão mais inseguros graças a Snowden.

D.E. – Não me surpreende que estejam contra Snowden, são cúmplices. Mas alguns deputados já disseram que não há evidência de um único atentado que tenha sido evitado por tamanha espionagem.

Boa parte da imprensa americana também tem uma posição contrária a Snowden.

D.E. – Colunistas de jornais, editores e comentaristas na TV precisam ter acesso às fontes de Washington, trocam o que eles consideram “furos” de reportagem por acesso aos poderosos. Não são críticos como deveriam das ilegalidades em troca de acesso aos figurões de Washington.

Mas o grande público americano tem formado uma opinião diferente sobre Snowden. Muita gente, dizem as pesquisas, acha que ele fez o que tinha de ser feito.

Qual é a diferença entre a maneira como o governo Nixon tratou o senhor e Obama com Snowden?

D.E. – A reação de Obama tem sido muito parecida com a de Nixon. O que mudou é que o que ele fez comigo era ilegal. O que Obama está fazendo com Snowden e Manning hoje é legal.

Nixon usou a CIA para me grampear, invadir o consultório do meu psiquiatra para tentar descobrir minhas fraquezas ou vulnerabilidades, tinham até um grupo para me dopar ou incapacitar, que felizmente não chegou a cumprir o plano. Tudo isso era crime, obstrução de Justiça, o que acabou encerrando o meu julgamento.

Fiquei como fugitivo por duas semanas com minha mulher, escondido, enquanto eu conseguia passar as informações para os outros jornais, já que a Justiça proibira o “New York Times” de divulgar os papéis temporariamente. Foi o meu equivalente à fuga do Snowden.

Hoje, usa-se a CIA domesticamente, seria fácil invadir para apreender documentos e o presidente tem até uma lista que autoriza execuções [por drones]. A Lei Patriótica depois de 11 de Setembro tornou tudo isso legal.

Snowden não quebrou um acordo de confidencialidade?

D.E. – Snowden não quebrou nenhum juramento. Tal juramento de sigilo não existe. Snowden e eu quebramos um acordo, conhecido como padrão 312, que assinamos ao sermos contratados. Ele prevê certas penalidades civis e administrativas por revelar informações confidenciais.

É suficiente para deixar todo mundo calado. Qualquer autoridade do governo americano ou do Congresso jura (ou afirma) apoiar e defender a Constituição contra inimigos internos ou externos. Há várias emendas da Constituição sobre liberdades civis e privacidade que precisam ser defendidas.

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Raul Juste Lores, da Folha de S.Paulo, em Washington