A CES 2014, que aconteceu esta semana [passada] em Las Vegas, induz a uma reflexão sobre o debate da neutralidade de rede. As manifestações do presidente da FCC, Tom Wheeler, sobre o tema são apenas mais uma das evidências de que quanto mais as coisas evoluem, mais complexa fica essa discussão. Uma questão surge quando se observa o universo de dispositivos conectados que estão sendo lançados e pensados e qual o papel que a internet tem no funcionamento e na interação com novos aparelhos eletrônicos e serviços digitais é: como tudo isso funcionará no ambiente da internet do melhor esforço (ou best effort, no termo em inglês), que é a internet que temos hoje e a internet possível em um ambiente em que o princípio da neutralidade está escrito em pedra (ou em lei)?
Já falamos que a CES deste ano foi o evento dos sensores. O que se viu foram todos os dispositivos e aparelhos eletroeletrônicos ganhando algum tipo de sensibilidade e inteligência. Muito disso depende de conectividade, que pode ou não acontecer pela internet. Muitos dispositivos interagem usando simplesmente redes bluetooth ou Wi-Fi, por exemplo, o que não passa pela rede pública. Mas muito do que está sendo criado, pensado e desenvolvido passa pela internet. Aplicações de saúde, segurança, automação, comunicação, entretenimento, interação com jogos, monitoramento… Há uma enormidade de novas aplicações que passam pela internet, mas que, num ambiente de “melhor esforço”, simplesmente não funcionarão como deveriam. Não queira ter seu monitor cardíaco conectado a uma rede que pode ou não ter uma determinada qualidade. Assistir a conteúdos em UHD pela internet que temos hoje, só com muita sorte. Carros conectados precisam de um nível de segurança nas comunicações muito além de uma mera conexão 3G. O ponto a que quero chegar é que as aplicações precisam cada vez mais de uma outra internet, em que parâmetros de qualidade precisam ser parte controlada de cada serviço. E, é óbvio, alguém vai ganhar dinheiro com isso, porque a inovação é movida pelo dinheiro, não se enganem.
Oferta diferenciada
Mas a internet hoje é comercializada de diferentes maneiras. Há a possibilidade de se fazer uma diferenciação por velocidades, por exemplo. Você compra um acesso de 10 Mbps, ou 30 Mbps, ou 1 Mbps, de acordo com aquilo que está disposto a pagar. Ter 30 Mbps, contudo, não é garantia nenhuma de uma Internet melhor do que quem tem 1 Mbps. Pode-se ainda diferenciar o acesso por volume, ou franquia de dados. Os planos existentes, sobretudo para a internet móvel, incluem franquias, de 500 MB, 2 GB, 10 GB etc., dependendo de quanto a pessoa acha que vai consumir e está disposta a pagar.
Mas já é possível diferenciar o tráfego pela qualidade. Aliás, isso é inclusive regulado pela Anatel. Parâmetros como latência, jitter, disponibilidade e outros podem ser controlados e, sobretudo na comercialização de acessos corporativos, já são parte dos contratos. Bancos, por exemplo, contratam conexões à internet com disponibilidade de 99,999%. Outras aplicações exigem latência controlada etc. Na prática, a contratação de planos com diferenciação de qualidade não é algo tangível ao usuário doméstico porque custa caro, mas é algo que, definitivamente, existe comercialmente.
Por fim, a oferta de internet pode ser diferenciada pelo conteúdo. Por exemplo, acesso grátis a redes sociais, ou serviços governamentais. Isso já existe no Brasil, por exemplo, em várias operadoras móveis, no programa Gesac, até no programa de “Internet 0800” que o governo pensou em lançar.
Hora de preparar os reguladores
Nos EUA, a AT&T acaba de lançar o serviço de dados patrocinados. Para determinados clientes, o tráfego é entregue de graça, sem uso de franquia, sem limites de velocidade etc. Desde que, é claro, alguém patrocine esse tráfego. Um banco, por exemplo, pode patrocinar o tráfego a seus sites, ou um serviço de vídeo, ou uma aplicação de governo, ou uma rede social. É bom para o usuário, que tem o conteúdo de graça pago por alguém (ok, não existe almoço grátis, mas enquanto a decisão couber ao usuário, respeitadas regras transparentes de oferta, não parece ser um problema). Há, obviamente, o risco de que quem tenha dinheiro para “patrocinar” o tráfego leve vantagens sobre os demais serviços. É um risco, é verdade. Mas não é uma ameaça nova. Hoje só anuncia na TV aberta, por exemplo, quem tem dinheiro. Milhões de pequenas e médias empresas não têm como pensar em anunciar no intervalo da novela por absoluta falta de condições financeiras de fazê-lo, e isso não é um problema.
Voltamos, então, a discussão para a questão da neutralidade. Do ponto de vista do mundo dos negócios que está por trás da Internet, ela não faz o menor sentido e, na prática, já não existe. Do ponto de vista dos princípios, sobre o que é melhor para a sociedade, para a economia e para o desenvolvimento de inovações, é um debate mais complexo e longo, e nunca haverá vencedores nessa discussão. Haverá, no máximo, uma posição que prevalecerá e ficará escrita.
A questão é se é realmente o caso de estabelecer essa posição em lei. Algo que, em tese, deve ser cumprido enquanto não for mudada, e que deve mudar pouco. O Brasil tem um exemplo recente de uma proibição estabelecida em lei, que é a segregação entre o mercado de conteúdos e distribuição, onde empresas que estão em um lado do negócio não podem participar do outro. Ainda é cedo para dizer quais as consequências dessa limitação, colocada na Lei do SeAC (Lei 12.485/2011). O benefício, por enquanto, foi garantir a cada um dos lados uma reserva de mercado.
A CES e outros eventos em que o mercado mostra para onde caminha e pensa evoluir evidenciam que a inovação caminha bem enquanto não existem limitações aos modelos de negócio. Há espaço para tudo, inclusive abusos e atropelos nesse processo, sem dúvida. Tom Wheeler, da FCC, disse, em relação à estratégia da AT&T, que o melhor é observar e agir apenas se houver excessos. No Brasil, o debate sobre o Marco Civil avança sobre 2014 com a questão da neutralidade ainda aberta e no centro das atenções. Será que em vez de se tentar criar um remédio para a posteridade, para um problema que não se sabe direito qual é, não seria a hora de pensar em preparar os reguladores (Cade, Anatel, Ancine etc.) para enfrentar os abusos que inevitavelmente aparecerão?
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Samuel Possebon, do Tela Viva, em Las Vegas