Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um céu sertanejo

Perdi um professor e um amigo. O Rio Grande do Norte perdeu um intelectual e o mundo ficou com um cangaceiro a menos no combate às injustiças e malvadezas na política e na cultura. Moacy Cirne, com seu Balaio Incomum, a Folha Porreta, era uma espécie de Dom Quixote do fanzine dos anos 1980-90 denunciando hipocrisias da vida cotidiana e do mundo acadêmico.

Nos anos 1970, no recém-fundado curso de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Moacy Cirne, um dos maiores estudiosos de histórias em quadrinhos no Brasil, fazia parte de um rol de jovens professores que se dispunham a percorrer a trilha estreita entre o incoformismo com o arbítrio e o sonho de que a universidade poderia atuar como espaço de resistência. O professor Antonio Serra, colega de Moacy daqueles tempos, dá seu depoimento:

“Conheci Moacy em 1972, quando comecei a dar aulas na UFF. Ele fazia parte de um grupo admirável de professores, reconhecidos por sua qualificação intelectual, mas, sobretudo, como pessoas que a enorme custo mantiveram acesa a ideia de liberdade naqueles tempos de ditadura. Ao lado de Breno Kuperman, Carlos Henrique Escobar, Gustavo Lyra, Marco Aurélio Luz, Muniz Sodré, Nilson Lage, Pedro Garcia – Moacy se manifestava, em aula, eventos e mesmo em reuniões vigiadíssimas promovidas pelos bravos estudantes do IACS [Instituto de Arte e Comunicação Social], cultivando o inconformismo e dificultando a acomodação às pressões, proibições, perseguições e expurgos que iam se tornando costumeiros”.

Os ventos dos anos 1980 refrescaram o clima universitário, abrindo espaço para ousadias e experimentações estéticas. Moacy ressuscitou ou inventou, quem sabe, o poeta popular Chico Doido de Caicó, e publicou o Poema da Buceta Cabeluda, de Bráulio Tavares, que circulava com sucesso entre alunos e professores do IACS. Os versos diziam:

“A buceta da minha amada/ tem pelos barrocos/ lúdicos, profanos/ É faminta como o polígono-das-secas/ e cheia de ritmos/ como o recôncavo-baiano”.

Quem conhecesse apenas essa faceta de Moacy poderia imaginá-lo um devasso, um pervertido sexual ou simplesmente um abusado. Pois Moacy era uma das pessoas mais inocentes que conheci, doce figura, bom papo, bom copo (pelo até quando a hepatite permitiu).

Torcedor de arquibancada e admirador do futebol-arte, escalava de cabeça times inteiros de 40 anos atrás. Certa vez ele me arrastou ao Maracanã para ver Argentina e Uruguai, numa Copa América. Havia um bom motivo: Maradona estava em campo. A paixão pelo Fluminense ficou eternizada no livro Maraca, Maracanã que te quero Fluminense, mas o coração potiguar também batia mais forte quando o ABC jogava.

Cangaceiro fino

Professor de carreira da UFF, Moacy ocupou duas vezes a chefia do Departamento de Comunicação Social, com mais de 50 professores. Da segunda vez, cansado do vai-e-vem burocrático de memorandos, respondeu a uma cobrança insistente dos órgãos superiores da UFF num memorando insólito, ao ocupar toda a folha de papel com a única frase: “já enviei a informação solicitada”, “já enviei a informação solicitada”…

Cinéfilo apaixonado, foi capaz de viajar de ônibus entre Natal e Recife nos anos 1960 só para assistir a um filme que ele sabia que não passaria na capital potiguar. Se existe purgatório, no momento Moacy deve estar cobrando pessoalmente do também nordestino cardeal Eugênio Sales, um de seus desafetos, por que ele mandou proibir o filme Je vous salue Marie, de Jean-Luc Godard, em 1985, mesmo ano em que a ditadura militar chegava ao fim. Mas Moacy era um cangaceiro fino. As gargantas cortadas ficavam restritas simbolicamente a seus textos do Balaio.

Transcrevo aqui os desejos do professor Antonio Serra nesta viagem ao céu sertanejo de nosso poeta:

“Meu desejo é que Moacy disponha de toda a eternidade para frequentar todos os forrós do universo, sentar às mesas com Maiakovski, Glauber, Zé Limeira, permitindo-se, por intervalos infinitos, ler o Tico-Tico e devanear com Bachelard ao som do Bach e Glenn Gould”.

A gente vai sentir saudades desse cabra.

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João Batista de Abreué jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense, com a colaboração do professor de Filosofia Antonio Serra, também da UFF