Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O silêncio em xeque

Autor de O Apanhador no Campo de Centeio, obra que introduziu uma voz completamente nova na escritura americana e rapidamente se tornou um livro cult, um ritual de passagem para os intelectuais e os desiludidos, J. (de Jerome) D. (de David) Salinger tornou-se conhecido também pela reclusão – morto em janeiro de 2010, logo depois de completar 91 anos, ele vivia isolado havia mais de 50 anos na cidadezinha de Cornish, em North Hampshire. Recusava pedidos de entrevistas e afugentava curiosos que cercavam sua propriedade. Mas, mesmo fechado em seu bunker, Salinger mantinha contato com o mundo, especialmente quando seu nome e sua obra eram comentados pela grande imprensa.

É o que defendem o cineasta Shane Salerno e o escritor David Shields, autores de Salinger, a mais completa biografia sobre o autor americano, que a Intrínseca lança agora. Trata-se de um alentado trabalho de pesquisa que levou nove anos, período em que foram entrevistadas mais de 200 pessoas que tiveram alguma ligação com Salinger: colegas com quem lutou na 2ª Guerra Mundial, amigos de faculdade, críticos literários, editores, conselheiros espirituais e membros da família.

Ponto de partida

O projeto começou como um documentário finalizado por Salerno no ano passado, o que explica sua construção no formato de roteiro: em suas mais de 700 páginas, Salinger emenda uma série de depoimentos de pessoas que participaram de sua trajetória – com isso, é possível reconstituir a infância atribulada, o trauma adquirido na guerra, o interesse por mocinhas, a aproximação com a filosofia oriental e o zen-budismo, além dos problemas familiares.

Um dos pontos mais interessantes é a reconstituição dos 11 meses em que Salinger participou da guerra como soldado da contrainformação – o escritor vivenciou momentos cruciais como o desembarque das forças aliadas no Dia D (período em que manteve agarrados ao peito os originais de O Apanhador), a arriscada travessia pela floresta alemã de Hürtgen, a terrível descoberta dos campos de concentração até o estabelecimento da paz, que encontrou Salinger internado por esgotamento mental.

“Ele esteve em cinco batalhas sangrentas na 2.ª Guerra e, durante algum tempo, transformou seu sofrimento acumulado em arte perecível”, escrevem os autores. “Esses golpes físicos não só definiram sua arte como também o transformaram em um artista que exigia de si mesmo nada menos que a perfeição.”

A perturbação mental sofrida durante o conflito na Europa foi responsável pela genialidade do escritor, sustentam os autores – “A guerra lhe deu munição emocional para concretizar seu sonho: ele não só veio a ter seus contos publicados na New Yorker, como se tornou a grande atração da revista.”

Foram anos esplêndidos, iniciados em 1948 com a publicação do conto Um Dia Ideal para os Peixes-Banana, passando por Para Esmé, com Amor e Sordidez (1950), até chegar à consagração com Apanhador (1951), Nove Estórias (1953) e Franny (1955), escritos em que Salinger converteu suas feridas de guerra em geradoras de arte atemporal. “O sucesso de O Apanhador”, sustentam os biógrafos, “é que se trata da dissecação de um trauma e um motivo um tanto óbvio para que tantas pessoas se identifiquem com o romance é que todos temos traumas.”

Essa identificação atingiu um grau de extremo perigo em rapazes como John Hinckley que, sob a influência de O Apanhador, tentou assassinar o presidente Ronald Reagan, em 1981. Ou, pior ainda, em Mark David Chapman que, em dezembro de 1980, ao matar John Lennon com vários tiros, carregava um exemplar do livro dentro do capote.

A notoriedade, no entanto, teve um efeito de reclusão em Salinger que, famoso, se sentia exposto. E, a cada vez que tentava penetrar no mundo adulto de conversas e comércio, ele era visto (sempre se via) como um ser defeituoso.

Esse é o ponto de partida para Salerno e Shields enumerarem alguns problemas que, segundo eles, poderiam explicar as atitudes do escritor. Primeiro, um defeito físico – Salinger nasceu com apenas um dos testículos e, de certa forma, isso fez com que associasse a sexualidade adulta a grosseria e vulgaridade. Em seus contos, por exemplo, os homens revelam fixação por pés femininos, “sexualidade não genital que prescinde de desempenho”.

Eremita querido

Os autores lembram que, durante sua vida, Salinger foi atraído por meninas novas, inexperientes em sexo, o que dificultaria a elas descobrir sua limitação física. A lista de paixões foi extensa, mas nenhuma das garotas suplantou o interesse que teve por Oona O’Neil, filha do grande dramaturgo Eugene O’Neil. Salinger era fascinado por sua beleza estonteante e não se conformou quando ela preferiu ficar com Charles Chaplin, que era 37 anos mais velho.

“É significativo e revelador que Salinger, durante toda a vida, mantivesse uma paixão não correspondida por um relacionamento que, ao que parece, nunca se consumou”, observam Salerno e Shields, dizendo ainda que o escritor reproduziu esse rompimento com Oona muitas vezes, com Jean Miller, Claire Douglas, Joyce Maynard e várias outras jovenzinhas.

Outra ferida identificada por Shields e Salerno era religiosa. Salinger não sabia se era judeu ou cristão, visto que seus pais seguiam, cada um, uma orientação. Isso se tornou mais aguçado na maturidade, quando optou pela reclusão: a filosofia vedântica, que pregava o domínio da abstração, despontou como um alívio espiritual. O custo, porém, foi o fracasso artístico. “Há duas delimitações críticas na vida de Salinger: o pré e o pós-guerra, o pré e o pós-religião”, observam os biógrafos. “A guerra o destruiu como homem e tornou-o um grande artista; a religião ofereceu-lhe o consolo espiritual no pós-guerra e matou sua arte.”

Isolado em Cornish, onde viveu até morrer, Salinger lutava pela sua reclusão, mas gostava de saber o que se passava ao redor. Detestava lidar com a avalanche de correspondência que recebia, mas se queixava de não haver entrega de cartas aos domingos. Apresentava-se como eremita, porém era querido pelos habitantes de Cornish, que sempre o viam nas festas da cidade. Como diz o também biógrafo Paul Alexander, Salinger era um recluso que gostava de flertar com o público para lembrá-lo de que era um recluso.