Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O cerco ao grátis

Morador de Porto Alegre, o designer Andrey Damo paga todos os meses R$ 16,90 para ver filmes e séries no Netflix, serviço de exibição de vídeos em streaming na internet. Também paga pelo espaço extra no Dropbox, serviço de armazenamento de arquivos, e pelo Evernote, plataforma que usa para guardar anotações de trabalho. Assim como pelo Deezer, um banco de músicas que, como o Netflix, cobra mensalidade. “Gasto em torno de R$ 100,00 a R$ 130,00 por mês com esses serviços”, diz.

Cinco anos atrás, imaginar um consumidor assim era ir contra a corrente. Futurólogos e pesquisadores de tendências previam que músicas, vídeos, livros e qualquer outro bem digital teriam um único preço: zero. A pirataria corria livre e sites de torrent (sistema de compartilhamento de arquivos), como o Pirate Bay, proclamavam o fim da propriedade intelectual. A indústria da música estava quase falida. No meio de tudo isso, em 2007, o site do New York Times desistiu da cobrança pelo conteúdo, que havia iniciado dois anos antes, e, juntando-se a quase todos os jornais importantes, passou a oferecer notícias de graça.

Em 2013, o New York Times tornou-se a marca mais importante, entre os maiores jornais do mundo, que cobram pelo conteúdo. Enquanto os donos do Pirate Bay lutam contra uma condenação na Justiça da Suécia por pirataria, desde 2011 o Netflix movimenta mais dados pela internet do que todos os serviços de torrent. E dezenas de milhões de usuários pagam ao Deezer e ao Spotify para ouvir músicas em streaming.

Não é que os serviços e produtos grátis tenham deixado de ser importantes. O Google ainda não cobra nada pelas buscas e pelo uso do Gmail, assim como redes sociais, como Facebook, Twitter e LinkedIn continuam a oferecer acesso de graça. O Skype tem chamadas on-line gratuitas e o YouTube, os vídeos. Sexto site mais acessado do mundo, a enciclopédia Wikipedia também é de uso livre. Milhares de outros sites são construídos a partir de códigos abertos, gratuitos, na internet. E também há os aplicativos, de GPS a mapas, players de música, busca de táxis etc., baixados para tablets e smartphones.

O ecossistema Google

No estudo “The attention economy: measuring the value of free goods on the internet” (A economia da atenção: o valor dos bens gratuitos na internet), dois economistas, professores do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Erik Brynjolfsson e JooHee Ho, concluíram que o valor do que é oferecido de graça online – serviços como a liberação do código-fonte ou templates de sites, que podem ser modificados para a criação de novos, ou as ligações no Skype – é de US$ 300 bilhões e aumenta US$ 40 bilhões por ano. “Serviços gratuitos são subestimados”, afirma Brynjolfsson, autor de Race Against the Machine (Corrida contra a máquina), livro sobre como a tecnologia está acelerando a inovação e a produtividade.

Mas eis o outro lado. Aplicativos pagos para smartphones movimentaram US$ 20 bilhões em 2013 – 60% mais do que em 2012 – e até 2017 deverão chegar a US$ 63 bilhões. As vendas digitais de música devem ter fechado 2013 com US$ 7 bilhões, o segundo ano de crescimento desde 1999, quando surgiu o formato MP3.

A estrela dos serviços fechados é o Netflix. Lançado em 1997 para aluguel e entrega de vídeos em domicílio, já funciona em 43 países e tem 40 milhões de assinantes, superando a HBO, da TV a cabo, que tem 31 milhões. A mensalidade dá direito a um acervo de estimados 60 mil vídeos (a empresa faz segredo desse número), entre filmes, séries, documentários, programas de TV e palestras. Em 2013, o serviço também lançou séries próprias, como a quarta temporada de Arrested Development, comédia produzida originalmente para a TV, Orange Is the New Black, sobre uma prisão feminina, e o drama político House of Cards, com Kevin Spacey, a primeira série para a web indicada ao prêmio Emmy.

O Netflix já é responsável por um terço do fluxo de dados nos EUA, segundo a consultoria Sandvine, especializada em banda larga e tecnologia da informação. Os números são altos, não apenas devido ao número de usuários como pela quantidade de informação em um vídeo. Em poucos anos, o site mudou o modo de se ver TV, podendo ser assistido não apenas no computador como em consoles de videogame, tablets e smartphones. Apesar da concorrência de outros sites de streaming, como Hulu e LoveFilm, da Amazon, e de equipamentos como a Apple TV, em outubro o Netflix tornou-se o canal mais assistido na TV paga americana. (O Netflix foi contatado diversas vezes, enquanto se produzia este texto, mas preferiu não se manifestar.)

A força dos serviços pagos na internet impõe a pergunta: a promessa do grátis perdeu fôlego? “As previsões não levaram em conta o prêmio que os consumidores estão dispostos a pagar pela conveniência”, diz Marcelo Träsel, professor de comunicação digital da PUC-RS. “A gratuidade é ótima, mas a geração que usou o Napster na adolescência cresceu e, embora tenha pouco tempo para catar músicas em servidores mundo afora, tem dinheiro para comprar um arquivo de qualidade garantida no iTunes.”

Por trás da ideia de que todos os produtos digitais seriam gratuitos está a Lei de Moore. Em artigo escrito em 1965, Gordon Moore, cofundador da Intel, previu que a capacidade de processamento dos computadores sempre aumentaria, enquanto os preços continuariam a cair. Isso levaria a um valor irrisório dos produtos digitais, imaginou Chris Anderson, então editor da revista Wired e hoje executivo-chefe na startup 3D Robotics. Seu livro Grátis, lançado em 2009, foi recebido como um manifesto da nova economia. Como o custo de qualquer produto digital, de uma matéria de jornal a uma música, cairia a quase zero, dizia Anderson, só haveria um caminho para o conteúdo na internet: o grátis.

O que dizer de quanto se gasta no mundo físico para produzir arquivos digitais? O valor seria recuperado por um número pequeno, mas suficiente, de fãs dispostos a pagar por serviços adicionais, que custeariam a maioria – modelo de negócios que Anderson batizou de freemium (free + premium). Jornais, músicos, escritores, programadores e produtores deviam esquecer as vendas e sobreviver com o dinheiro que viria dos extras: edições especiais, camisetas e doações.

Não foi bem assim. Modelos freemium são realmente cada vez mais comuns, mas o ano de lançamento de Grátis marca também uma virada no modelo de negócios na internet. Um dos motivos foi a popularização da banda larga. “Isso de que as coisas seriam gratuitas foi pensado em um tempo em que as conexões eram ruins. Os arquivos digitais eram quase físicos e ocupavam espaço. Fazia sentido guardar algo”, diz Silvio Meira, pesquisador de engenharia de software e professor da Universidade Federal de Pernambuco, integrante do primeiro comitê gestor da internet no Brasil. “Mas por que vou organizar milhares de discos e pastas se posso pagar um serviço que faz isso para mim e posso ouvir aquela música em qualquer lugar? Não se trata mais de música, de um produto, mas de um serviço.” Meira prevê que, por uma questão de conveniência, os downloads, cada vez mais, perderão espaço para os streamings.

O próprio conceito do que é grátis teve de ser redefinido. Certo, o Facebook é de graça, mas hoje os usuários são cada vez mais submetidos a anúncios. O mesmo se passa no Twitter. Afora isso, a rede social de Mark Zuckerberg desde 2010 relaxou seguidamente as regras sobre a privacidade de seus usuários. “Ficou mais claro, com o tempo, que o negócio das redes sociais e de algumas outras empresas é reunir dados dos usuários para uso em publicidade dirigida”, diz o sociólogo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal de São Carlos. O Facebook não fornece dados de ninguém, mas os utiliza para definir perfis de possíveis compradores de dado produto.

O Google não fica atrás. Há o monitoramento do conteúdo dos e-mails, para criar sugestões que aparecem no Gmail por associação com o que se está escrevendo. Para isso, os algoritmos pinçam palavras e apresentam anúncios relacionados a elas, mas, segundo a empresa, não leem o conteúdo das mensagens. De todo modo, os seguidos rearranjos em seus serviços, como o fim do agregador Google Reader e sua incorporação à rede social Google Plus, levam usuários, queiram ou não, a participar do ecossistema Google. Há que se ressaltar que a principal fonte de faturamento do Google continuam sendo as buscas no site, nas quais a privacidade é preservada.

“Cobrança do conteúdo é necessária”

Outro fator importante foi o cerco à pirataria on-line. Sites de torrent foram fechados e, no caso mais emblemático, os quatro suecos criadores do site The Pirate Bay foram condenados à prisão e a multa de US$ 6,7 milhões em 2009. Em 2012, Kim Dotcom, criador do serviço de armazenamento Megaupload, foi preso na Nova Zelândia e ainda corre risco de ser deportado para os EUA. Junto com legislações mais duras sobre o tema – sem contar aquelas não aprovadas, como a Sopa e Pipa, siglas de leis americanas que previam até cinco anos de prisão para a troca de arquivos –, na Europa e nos EUA, assim como acontece no Japão e na Austrália, tornaram-se comuns os processos contra quem baixa músicas ou filmes ilegais.

É um cenário diferente do que acontece no Brasil, onde o combate à pirataria se dá quase sempre contra produtos falsificados. A lei que tipifica crimes cibernéticos entrou em vigor em 2013. Em sua versão original, previa punição para downloads ilegais, mas o artigo acabou retirado. Bastou um descuido, porém, para o músico Flávio Flu Santos, baixista da banda DeFalla, saber a que ponto chegam as restrições no exterior. Ao visitar uma amiga na Alemanha, não notou que havia deixado o programa de torrent aberto e, sem perceber, baixou um filme no notebook. Na Alemanha, é proibido baixar arquivos protegidos por direito autoral. “Uma semana depois, estava em outra casa e recebo a notícia de que tinha chegado uma multa de €1 mil por compartilhamento ilegal de filme”, diz. “Minha amiga falou com advogados e conseguiu baixar o prejuízo pra €350.”

Contudo, dificilmente um modelo faria sucesso pelo medo. “A perseguição aos consumidores que faziam downloads ilegais talvez tenha tornado menos vantajosa essa prática, mas, se não houvesse serviços eficientes e de baixo custo para comprar filmes e músicas, duvido que as pessoas tivessem deixado de lado o intercâmbio de arquivos”, opina Trazer. “Se o cidadão continuasse sendo obrigado a importar um CD dos EUA, pagando caro e em dólares para ouvir o novo álbum de sua banda favorita, o fenômeno dos downloads ilegais não teria perdido aceleração.”

Até a dada como moribunda indústria musical encontrou um jeito de ganhar dinheiro com assinaturas. Em 2003, quando foi lançado, o iTunes, loja virtual da Apple, enfrentou ceticismo. Dez anos depois, tem mais de 500 milhões de usuários e já vendeu 25 bilhões de músicas. O modelo que mais vem crescendo, porém, é o das rádios pagas. Com 24 milhões de assinantes, Spotify, a maior delas, oferece mais de 20 milhões de canções. O serviço pode ser gratuito, mas terá anúncios, mesmo modelo de qualquer rádio. Há, no entanto, a modalidade premium, com mensalidade de US$ 9,99, sem publicidade e com melhor qualidade de som ou a possibilidade de ouvir música off-line. Já está em 20 países (ainda não no Brasil).

Deezer (5 milhões de assinantes), Rdio (números não revelados), Grooveshark (6,5 milhões e vários processos por pirataria, pois os usuários também podem fazer upload de suas músicas) e Pandora (2,5 milhões) competem com o Spotify, todos com modelos de cobrança parecidos. Até o Napster, primeiro serviço de troca de arquivos, hoje se dedica ao streaming e está presente em 14 países. “Se você tem um serviço pago, um preço justo e oferece boa qualidade e variedade de conteúdo, as pessoas preferem optar por isso do que baixar música grátis”, afirma Tiago Ramazzini, vice-presidente do Napster na América Latina.

Depois de se estabelecer na internet, graças aos aplicativos para celulares, esses serviços agora estão prontos para disputar audiência e publicidade com as rádios tradicionais. “Enquanto estava no meu carro, ainda agora ouvia a ABC, uma rádio de jazz da Austrália, no meu celular”, diz Meira. “Uma rádio local, mesmo oferecendo o serviço de graça, vai ter que se reinventar para competir.”

E os jornais e revistas? Depois de anos de tentativas de oferecer o conteúdo de graça e sobreviver com anúncios, 40% deles, no Brasil, já usam algum sistema de cobrança, segundo a Associação Nacional de Jornais (ANJ). Restabelecido em 2011, o paywall do New York Times atraiu 500 mil novas assinaturas e o jornal pela primeira vez fatura mais com assinantes (53%) do que com publicidade (47%). Estima-se que, em 2013, 400 jornais americanos tenham seguido o mesmo caminho, segundo a Press Plus, empresa que auxilia jornais a lançar programas de assinaturas digitais. O inglês The Guardian é atualmente o único grande jornal, no mundo, a não cobrar pelo acesso. “É uma tendência irreversível”, diz o diretor-executivo da ANJ, Ricardo Pedreira. “Os jornais acreditaram que poderiam ter um modelo baseado na audiência e pago pela publicidade, como a TV aberta, mas isso acabou sendo uma ideia equivocada. Hoje, é consenso que a cobrança do conteúdo é necessária.”

Sobrevivência em paralelo

Nem tudo são flores. Se os serviços são baratos para usuários, o ganho é muitas vezes irrisório para quem produz. Músicos como Thom Yorke, do Radiohead, Brian Molko, do Placebo, e David Byrne criticaram o valor que o Spotify paga aos artistas – US$ 140 para cada dez mil execuções. E estúdios culpam o Netflix pelo desinteresse nos lançamentos de filmes em DVD, porque o público passou a esperar o lançamento na internet, mesmo que demore alguns meses.

Quanto aos jornais, o San Francisco Chronicle desistiu do paywall, no ano passado, apenas alguns meses depois de adotá-lo, e novamente abriu o conteúdo. Vai apostar em serviços freemium para atrair novos pagantes.

Como muitas vezes acontece com tecnologias, o mais provável é que os modelos freemium, grátis e pago sobrevivam em paralelo, sem vencedores. “Não vai existir um modelo único, mas a cobrança pelo conteúdo na internet não tem volta, vai continuar”, diz Pedreira, da ANJ. “Sobreviverá quem entender que dólares que ganharia antes estão virando centavos”, afirma Meira. “Mas a questão sempre será simples: quem vai pagar a conta?”

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Alexandre Rodrigues, para o Valor Econômico