Na semana retrasada, o jornal Tribuna de Minaspublicou duas reportagens em que é possível verificar os “vários tons” de construção da realidade na cidade mineira de Juiz de Fora. De acordo com Weber (2006), a partir de uma “sociologia da imprensa”, é necessário que se questione “o que não se torna público através da imprensa”, investigando as relações de poder criadas pelo fato específico de que a imprensa noticia determinados temas e questões, sempre a partir de uma perspectiva específica, pois, em cada sessão do jornal, em cada caderno, a relação de poder público-imprensa é diferente. Dessa forma, ao se estudar o “estilo do jornal” consegue-se desvendar os modos como os mesmos problemas são discutidos.
A partir de uma “sociologia crítica do jornalismo”, é possível construir uma significação das notícias diárias. Embaixo temos duas fotos, publicadas, em duas reportagens diferentes, no jornal Tribuna de Minas (ver aquie aqui).
Uma (a de cima) criminaliza jovens negros, pobres, da periferia, sem educação e sem cultura, que “invadem” um espaço público para se refrescarem no lago da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A segunda (a de baixo) vangloria famílias brancas, de classe média, da região nobre, com educação e com cultura, que “ocupam” um espaço público para se refrescarem nos parques da cidade, que serão gradeados e disciplinados em breve.
“Pessoas de bem” e de “bom gosto”
A reportagem dos jovens negros (sem nome, idade, escolaridade e profissão) foi publicada no caderno Cidade e a autoria “por Tribuna” remete a uma autoria indefinida. Segundo o jornal, a prática não é “permitida” pela UFJF e os garotos “provavelmente” sabiam, pois penduraram suas roupas na placa que “alerta” para a “proibição” de nadar no local. Os “vigilantes” que fazem o “patrulhamento” da Universidade, quando “flagram a situação” ou recebem “denúncias”, “tentam retirar” as pessoas. Assim, estão sendo preparadas novas “regras” de uso do campus e uma das questões é que serão “reforçadas” as “proibições” de uso.
Já a reportagem das famílias brancas de classe média (todos com nome, apelidos carinhosos, idade, escolaridade e profissão) foi publicada no caderno Cultura e foi assinada por Bárbara Riolino. O início do texto é de um bucolismo exacerbado, em que “tudo fica mais colorido, e a preguiça passa batida”, e “para se refrescar, as piscinas dos clubes são pontos estratégicos para uma boa conversa e se bronzear” enquanto que as crianças vivem o “paraíso” do recesso escolar. A reportagem diz que encontrou outros lugares, além dos clubes da classe abastada, com diversas histórias envolvendo amigos e famílias, que oferecem espaço para brincadeiras, atividades lúdicas e exercícios físicos, uma forma de “incrementar a rotina de cada família”. Estes espaços são aproveitados para a prática de esportes e “registros fotográficos espontâneos”, complementa a reportagem. Já outras famílias “estendem a toalha na grama com frutas, biscoitos, sucos e água para hidratar os pequenos, em um legítimo piquenique”, pois “o espaço é muito limpo e conservado”.
Deve-se ressaltar que este mesmo jornal, segundo informações dadas pelos responsáveis, tem duas posturas de publicação. Durante a semana, noticiam-se os fatos e no domingo, reportam-se as interpretações dos fatos de forma mais consistente, dando prioridade a questões mais leves. Ou seja, as fotos dos jovens negros foram publicadas durante a semana, em meio a crimes violentos e denúncias graves. Já as fotos das famílias brancas foram publicadas em meio a notícias de culinária e outras formas culturais para as “pessoas de bem” e de “bom gosto”.
Construção da realidade
Assim sendo, a partir desse simples exame do jornal de maior circulação em Juiz de Fora, uma cidade de porte médio, não se pode esquecer de averiguar como os tipos sociais produzidos negativamente podem contar com a legitimidade e o aval da mídia enquanto formação discursiva, porquanto agencia uma “naturalização da verdade”, cujo discurso é constitutivo de uma sociedade “normalizadora”, procurando “narrar” as imagens de tipos sociais que são constantemente excluídos, o usuário de drogas, o vagabundo, o negro, o pobre, o analfabeto, o “funkeiro”, o criminoso, o mendigo, a prostituta. Fica claro, assim, que as imbricações entre saber e poder na história da imprensa brasileira remete a uma “arqueologia do saber” e a uma “genealogia do poder” no jornalismo do país. Por conseguinte, o discurso midiático se relaciona com outras características da teoria do biopoder (FOUCAULT, 2008), porquanto a partir do nascimento da biopolítica, os fenômenos próprios à vida da espécie humana adentram na ordem do saber e do poder, no campo das técnicas políticas. Segundo Deleuze; Guatarri (2000), quando o diagrama de poder abandona o modelo de soberania, proporcionando o “disciplinário” de biopoder e de biopolítica das populações, a responsabilidade e gestão da vida surgem como um novo objeto de poder.
A construção discursiva na mídia procede, dessa forma, “por redundância”, pois nos diz o que é necessário refletir, já que sua linguagem não é informativa e muito menos comunicativa, mas é a transmissão de palavras de ordem, “seja de um enunciado a um outro, seja no interior de cada enunciado, uma vez que um enunciado realiza um ato e que o ato se realiza no enunciado” (DELEUZE; GUATARRI, 2000).
Enfim, pode-se perceber que é muito fácil construir a realidade em Juiz de Fora.
DELEUZE, G.; GUATARRI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Edª 34, 2000.
FOUCAULT, M. Nacimiento de la biopolítica: curso en el College de France: 1978-1979. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2008.
WEBER, Max. “Sociologia da imprensa: um programa de pesquisa”. In: MAROCCO, B.; BERGER, C. (orgs.). A era glacial do Jornalismo: teorias sociais da imprensa. Porto Alegre: Sulina, 2006
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Ramsés Albertoni é professor, Juiz de Fora, MG