Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que os franceses têm para mostrar

No final do ano passado fui envolvido em um triste episódio durante a gravação do programa em que participava como comentarista político na antiga TVE do Rio, que hoje faz parte da TV Brasil. Durante o intervalo, a apresentadora pediu que eu diminuísse as críticas feitas ao governo no primeiro bloco, pois ela poderia ser demitida diante da iminente entrada da emissora na rede pública de televisão. Para manifestar minha indignação com tal censura, tirei o microfone da lapela e abandonei o programa no meio da gravação. Antes de sair do estúdio, ainda disse que aquela atitude poderia transformar uma boa idéia em um monstro nos moldes do panóptico da Idade Média.

O fato foi amplamente divulgado pela imprensa. Além da reportagem publicada em O Globo, houve cobertura de jornais paulistas e de revistas semanais. Em todos os veículos, disse que o episódio fora causado por uma autocensura. Ou seja, muito antes de qualquer possível orientação superior, a própria apresentadora tratou de incorporar o que considerava uma atitude compatível com a nova rede de televisão.

O episódio, no entanto, não abalou minha crença na viabilidade da TV pública. Fui, sou e continuarei sendo favorável à sua implantação, embora discorde dos métodos que estão sendo utilizados. Por isso mesmo, não posso tolerar o desvio de sua finalidade, que é servir ao público, e não ao governo.

Modelo de financiamento

Ao contrário do que disseram alguns colegas da universidade, não acredito que minha atitude tenha servido aos interesses daqueles que são contrários à democratização dos meios de comunicação, pois ela foi apenas um sinal de alerta, seguido de outros (vide Eugênio Bucci e Orlando Senna), para que não se perca o foco na própria democratização. Aliás, nem vou entrar na discussão deste conceito. Minha intenção é outra.

Passados alguns meses, volto ao assunto para comentar a decisão do presidente Nicolas Sarkozy de proibir a publicidade nas emissoras públicas da França, país onde realizo pesquisa de pós-doutorado sobre linguagem audiovisual. Minha intenção é que a comparação entre os dois modelos possa servir como mais um instrumento para o debate.

Para começar, lembro que os funcionários das cinco emissoras públicas francesas fizeram duas greves – uma no começo do ano e outra há poucos dias – para questionar a decisão do presidente francês. No dia 13 de fevereiro, nenhum programa ao vivo foi transmitido, inclusive os telejornais. E, no dia seguinte, os jornalistas manifestaram sua opinião nos próprios programas da emissora. Em outras palavras, não só se colocaram contra o chefe de Estado, como tiveram absoluta liberdade para criticá-lo, o que não aconteceria no modelo proposto no Brasil, já que os dirigentes de nossa TV pública são indicados pelo próprio governo.

Na França, o orçamento da rede pública é o equivalente a 6,8 bilhões de reais. Desse total, 4,5 bilhões de reais (65%) são bancados por uma taxa anual de cerca de 300 reais paga pelos contribuintes. Outros 30%, que correspondem a 2 bilhões de reais, são provenientes da publicidade, e ainda há 5% de receitas diversas. Entretanto, apesar de terem 36% da audiência, as TVs públicas recebem apenas 25% das verbas publicitárias para o veículo, enquanto os dois grandes canais abertos privados engolem os 75% restantes.

Garantias de independência

O argumento do governo francês para proibir a publicidade é evitar depender da audiência e, assim, melhorar a qualidade dos programas (nem vou comentar a conhecida amizade de Sarkozy com o dono da principal emissora privada). Para isso, no entanto, ele pretende aumentar a taxa dos contribuintes e outros impostos correlatos, o que já seria suficiente para motivar a greve. Mas as manifestações dos funcionários ultrapassam as razões econômicas.

Apesar de estarem obviamente preocupados com a queda dos próprios salários, o que realmente irrita os colegas franceses é a interferência direta do presidente da República na administração da TV. A palavra de ordem dos grevistas não foi apenas contra o fim da publicidade, mas, sobretudo, a favor do pluralismo e da independência do serviço público de televisão. É isso que faz toda a diferença.

A pergunta que devemos fazer no Brasil é sobre as garantias de independência no projeto de implantação da TV pública. Elas existem? Quais são? Como devem ser aplicadas? Quem vai fiscalizá-las? Não podem ser pessoas indicadas pelo governo ou dependentes dele. Do contrário, sempre haverá alguém para fazer uma censura prévia dos conteúdos ou vetar um comentarista mais crítico.

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Professor da UFF em pesquisa de pós-doutorado na Universidade de Paris – Sorbonne III