Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A repórter de polícia

Albeniza Garcia, a jornalista que morreu na quinta-feira aos 84 anos, era do tempo da matéria escrita com três cópias em carbono, uma para o arquivo particular do repórter, outra para a revisão e outra ainda para o chefe de reportagem saber o que acontece na equipe. Escrevia-se sobre o morto em decúbito dorsal, sobre a pobre infeliz ateando fogo às vestes pela vergonha de ser mãe solteira. O tresloucado gesto vendia jornal. Com a lauda que sobrava dessas ocorrências, alguém fazia uma bolinha de papel e, pimba!, jogava na cabeça do companheiro da frente.

Nem melhor, nem pior. No tempo da Albeniza a Redação era assim.

Às sextas-feiras, no esforço do fechamento das edições de sábado, domingo e segunda, um redator abria a garrafa de uísque vendida pelo contrabandista de fé, um sujeito cheio de histórias suspeitas que circulava credenciado entre as mesas. Era o tempo do “ganha-se pouco, mas é divertido”. Faltou matéria? Taca o calhau. Na gaveta dos mais letrados dormitava um romance regionalista à espera de editora sagaz.

Albeniza é dessa pré-história, quando o repórter era o rei do jornal. Gutenberg tomava chope com Herbert Moses no Vermelhinho do Castelo e, na falta de grandes notícias, colocava-se na manchete um ponto de exclamação para espantar o leitor. Redação não era lugar para moça, ainda mais na reportagem de polícia, onde nossa heroína reinou. Ela enfrentou bandidos e delegados, dedicando a todos a mesma educação e paciência. Trocava tudo por sua adrenalina básica: a informação exclusiva. De preferência com respingos de sangue, pólvora de 45, e inédita até mesmo no boletim de ocorrências da DP.

Ao seu lado, subindo o morro, seguia o também repórter Otávio Ribeiro, conhecido como Pena Branca. O homem mal sabia escrever, como era comum nas Redações. Não tinha importância. Ele conhecia as leis da malandragem e as contava com estilo, quase tudo gíria, no jornal do dia seguinte. Pena Branca estava entre os repórteres que ao final da caçada ao bandido Cara de Cavalo foram chamados pelos detetives para também dar uns tecos no cadáver do meliante. Foi antes do politicamente correto, da necessidade de repórter de polícia usar colete à prova de bala. A todos, homens ou mulheres, Pena Branca chamava carinhosamente de “Piroca”.

Valsa triste

Dizer que Albeniza cruzou como uma fera esse bas-fond machista, pode parecer o anúncio de supermulher, das coxudas que as academias formatam para cair estraçalhando esses pobres coitados que somos nós outros, todas dispostas ao enfrentamento na cama, na chuva ou na Redação. Albeniza era baixinha, magrinha, mas tinha caráter, esse cada vez mais rarefeito músculo adutor da dignidade humana. A todos, da ordem ou da desordem, ela impressionava.

Vivia da ética. Jamais faria como um concorrente, que, para alavancar as vendas de seu jornal, inventou o “Mão Branca”, um famigerado justiceiro da Baixada. Albeniza não traía os fatos, colegas ou fontes. Permaneceu sempre ao lado dos bons princípios da profissão e da notícia correta. Um dia tocou o telefone, era o bandido Maurinho Branco. Estava libertando seu sequestrado daquela semana, o publicitário Roberto Medina, e queria que a jornalista fosse ao evento. Só acreditava nela.

Tudo isso foi sei-lá-quando, mais ou menos na época daquele samba que reproduzia a linguagem de um jornal popular e falava da mulher, tresloucada e seminua, projetando-se do oitavo andar porque o noivo não dava maconha para ela fumar. Albeniza viu esse presunto. Muitos outros. Espremia-se o jornal e saía sangue. Entrevistou Mariel Mariscot, Doca Street. Esteve compungida no enterro de Cláudia Lessin. Procurou o menino Carlinhos por Santa Teresa.

Chamavam-na “Agatha Christie dos pobres”. Albeniza ria. Estava sempre rindo, a não ser quando o delegado se recusava a atendê-la ou alguém sumia com o seboso, o caderno-mágico com os telefones das fontes. Aí Albeniza perdia os pundonores. Aproveitava que o politicamente correto não havia chegado também neste parágrafo e mandava todo mundo à merda, um lugar para lá da rádio-escuta, o cantinho de onde os estagiários entravam na faixa de sintonia da polícia para saber se o bicho estava pegando.

No Rio de Janeiro o bicho está sempre pegando, e lá ia Albeniza para a Invernada de Olaria atrás da ossada da Dana de Teffé, para a Mangueira atrás do Mineirinho. Era um tipo de repórter que não existe mais, formada jornalista no pegáprácapá das ruas e no mau cheiro de verão nas delegacias do subúrbio. Fuçava sem a ajuda do Google. Nada a ver com o Newsroom, com a estagiária do calcanhar sujo da PUC ou os jabás mandados pelas assessorias.

Com zero de glamour e muito de dedicação, chegou a vez de Albeniza Garcia colocar a capa de plástico sobre a Remington. Fechar o piano onde tocou suas histórias, a valsa triste da Cidade Maravilhosa. Hora de entregar a derradeira lauda e, por motivo de força maior, não aceitar o pedido do chefe para no dia seguinte suitar a reportagem, acompanhar o caso nas próximas edições.

Desce a última página das velhas Redações.

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Joaquim Ferreira dos Santos é colunista do Globo