Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O 171 nigeriano

O golpe não é propriamente novo. No Brasil, por exemplo, já existia a velha tradição da “venda do bilhete premiado”. Como relembra Carlos Miguel Sobral, delegado que chefiou o Serviço de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal entre 2007 e 2013, o criminoso abordava a vítima dizendo: “Olha, estou com um problema, preciso do dinheiro agora, você me dá 100 e pega 200 depois”.

É o truque do pagamento adiantado, ou “advance-fee scam”, na expressão em inglês, que na última década e meia passou a correr o mundo sob o codinome de “golpe da Nigéria”, ou ainda “419”, referência ao número do artigo que define fraude no código penal nigeriano. Disseminou-se também no Brasil, atesta Sobral, que credita o alcance do ardil à boa-fé dos destinatários e à sensação de segurança que se tem ao usar o computador em casa ou no trabalho.

Na versão clássica, a vítima potencial recebe e-mail de um suposto africano, afirmando ter centenas de milhares de dólares, mas dizendo precisar de ajuda para transferir os recursos para fora da Nigéria, de Gana ou de algum outro país –além dos mais costumeiros, da África Ocidental, há variantes de países do Leste Europeu, por exemplo. Quando alguém responde, começa o jogo de convencimento, e vez ou outra arranca-se algum dinheiro.

A armação é tão flagrante, e o golpe tão comum, que a maior parte dos destinatários das mensagens se questiona quem seria capaz de cair nele. Mas, apesar das aparências, não é um tipo de estratagema ingênuo, nem recente: ele seria da mesma linhagem de um embuste que vem sendo desenvolvido há cerca de 200 anos.

Prisioneiro espanhol

Segundo Robert Whitaker, doutorando em história da Universidade do Texas em Austin (EUA), que publicou um recente ensaio sobre o tema na revista virtual “The Appendix”, ele se tornou amplamente conhecido ao longo do século 19 e início do 20 como “golpe do Prisioneiro Espanhol”.

O primeiro registro teria sido feito em 1834, por Eugène Vidocq, em suas “Memórias”. O fundador e chefe até 1827 da Sûreté, a polícia francesa, reproduz no livro o modelo de uma carta enviada por prisioneiros franceses “mais espertos”, e por vezes se fazendo passar por um espanhol –o nome Luís Ramos era um hit–, dizendo-se vítimas de perseguição política, pedindo dinheiro e mencionando um baú com milhares de francos (ou pesetas), como recompensa para quem se dispusesse a ajudar.

“O sr. certamente ficará surpreso ao receber uma carta de uma pessoa que desconhece, que está para pedir um favor”, começa o texto reproduzido por Vidocq. “Mas, na triste situação em que me encontro, estou perdido se uma pessoa honrada não me mandar algum socorro. Essa é a razão de estar me dirigindo ao sr., de quem ouvi tanto que não posso hesitar em confiar todas as minhas questões.”

Segundo Whitaker, “houve outros golpes antes do Prisioneiro Espanhol, mas ele se tornou o mais popular e comum da Era Moderna. Surgiu na Guerra Peninsular [França napoleônica contra Espanha, Portugal e Inglaterra, 1807/14] e floresceu a partir de então graças à facilidade e à confiabilidade crescentes nas comunicações internacionais”. O pesquisador diz ter “certeza” de que o Brasil também “foi alvo ou origem de cartas do Prisioneiro Espanhol”.

O golpe chegou a inspirar vários romances e filmes, como “The Spanish Prisoner”, de David Mamet (o filme, de 1997, foi lançado no Brasil como “A Trapaça”).

De acordo com Robert Whitaker, um momento-chave para a sofisticação do ardil foi a virada para o século 20 na Inglaterra.

O historiador diz que, segundo suas pesquisas na seção da Scotland Yard dos Arquivos Nacionais Britânicos, foram fundamentais a popularização da máquina de escrever e do “Who’s Who”, catálogo dos mais ricos ingleses. “Livros como o Who’s Who’ permitiram não só selecionar vítimas que estavam bem de vida mas também ter acesso a seus endereços.”

A exemplo de outros estudiosos contemporâneos de mídia, como Tom Standage, autor de “Writing on the Wall: Social Media, The First 2.000 Years” (Bloomsbury, 2013), ele vê as redes sociais como anteriores e independentes da internet. O mesmo vale para os crimes que se aproveitam delas.

Primário 

Robert Whitaker aponta uma diferença entre os golpes do Prisioneiro Espanhol e o da Nigéria: enquanto as cartas do primeiro “tiravam as suas histórias diretamente das manchetes, para criar narrativas críveis de perseguição política ou governo tirânico”, os e-mails do segundo são inacreditáveis. Quanto mais primários, aliás, melhor para o fraudador.

Pelo menos é essa a teoria de Cormac Herley, pesquisador da Microsoft Research que vem se tornando conhecido por teses inusitadas, contra a corrente. Por exemplo, três anos atrás ele defendeu que adotar senhas complexas e trocá-las constantemente serve apenas para dar uma falsa impressão de segurança e desviar a atenção de perigos maiores.

Herley é autor de um estudo intitulado “Por Que os Golpistas Nigerianos Dizem que São da Nigéria?”, ou seja: por que deixam tão claro que se trata de um golpe? Para responder à questão –e para encontrar uma forma eficiente de enfrentar um ardil tão difundido– ele procurou abordar o tema desde o ponto de vista dos próprios criminosos, e não do das vítimas.

“Histórias rebuscadas de riquezas africanas são vistas pela maioria das pessoas como cômicas”, escreve ele. “A nossa análise sugere que essa é uma vantagem para o golpista, não uma desvantagem. Ao enviar um e-mail que afasta todos, a não ser os mais ingênuos, ele leva as vítimas mais promissoras a se autosselecionarem.”

O estratagema filtra os menos crédulos já nesse primeiro contato, para evitar que sejam muitos os candidatos da segunda fase, de convencimento individual.

“O golpe envolve uma campanha inicial de e-mails que tem custo quase zero”, diz Herley. “Só quando as vítimas potenciais respondem é que começa o esforço maior de equipe, com os passos seguintes por e-mail e, às vezes, por telefone.”

Uma forma de reduzir o alcance do “golpe da Nigéria” seria, portanto, elevar o número de pessoas que respondem ao primeiro contato, encarecendo o esquema e desestimulando os golpistas.

Isso já existe, em sites como 419 Eater, que instrui voluntários a localizar e aceitar golpes. Mas o resultado é limitado, segundo Herley, porque “é manual, não automático, e feito por lazer, sem visar a lucratividade do esquema”.

Para o pesquisador da Microsoft, “pensar como um golpista é uma habilidade acertadamente valorizada” entre os protetores de sistemas on-line, porque ajuda a “expor vulnerabilidades e suposições pobres”. Daí ele defender que “pensar como um golpista não termina quando se acha um buraco, mas deve prosseguir” até descobrir como funciona o golpe “como negócio”.

No Brasil, Carlos Miguel Sobral diz que fraudes desse gênero estão em queda, após terem atingido “um pico em anos anteriores”. Ele próprio passou para a área de projetos estratégicos de inteligência da PF. “O problema emergente, para o qual nos preparamos, diz respeito à segurança da informação, invasão de sistemas, ataques. Agora trabalhamos com o Ministério da Defesa. Segurança cibernética, esse é o estado da arte.”