Os argentinos falam em amputación. No Brasil se diria, de forma menos dramática, “entregar os anéis para salvar os dedos”. Depois de perder, no fim do ano passado, a batalha judicial que vinha travando desde 2009 contra o governo da presidente Cristina Kirchner, o grupo que edita o jornal portenho Clarín, o de maior circulação no país, acabou de acatar uma série de exigências da Casa Rosada para sobreviver à guerra de extermínio que Cristina move ao tabloide.
A perseguição data de 2008, quando o diário cometeu o pecado mortal de respaldar os ruralistas em seu confronto com o governo que até então o grupo apoiava. A guinada do Clarín levou a presidente a conceber, formular e fazer aprovar no Congresso uma Lei de Meios, alegadamente para desconcentrar o setor e democratizar a comunicação de massa no país. Na realidade, a intenção da Casa Rosada era vingar-se do Clarín, controlar o livre fluxo da informação no país e consolidar a sua posição de principal comunicador da Argentina.
Daí por que o texto da lei só pode parecer um avanço para quem se recuse a ver que o centralismo autoritário é a marca do modo kirchnerista de governar. Um conglomerado empresarial não pode ter mais de 10 emissoras de rádio e de TV aberta e de 24 a cabo. O seu alcance não pode ultrapassar 35% da população nacional. Numa mesma cidade, nenhum grupo pode ter um canal de TV aberta e outro a cabo, e em caso algum são permitidas mais de três licenças na mesma área.
Lei constitucional
Fundado em 1945, o Clarín integra a maior holding do gênero no país, faturando cerca de US$ 2 bilhões por ano. Além de outro jornal, o diário esportivo Olé, também editado em Buenos Aires, detém quatro canais de TV aberta, 10 emissoras de rádio e 240 concessões de canais a cabo. O que o grupo acabou de fazer para evitar o seu desmanche foi acatar uma série de exigências do governo. As mais importantes são como que um espelho dos alinhamentos ideológicos e dos interesses privados da presidente.
A primeira é a inclusão, na grade de transmissão de sua empresa de TV a cabo, da Cablevisión, porta-voz e propagandista do regime venezuelano; a segunda é acrescentar ao sistema o canal de um empresário amigo da família Kirchner; a terceira, dar um upgrade à estatal TV Pública, situando-a entre os dois canais de maior audiência, Telefé e Trece – desalojando dali o canal de notícias 24 horas do grupo, o Todo Notícias. Como é possível que tudo tenha sido combinado previamente, o diretor da Administração Federal de Serviços Públicos (Afsca), Martín Sabbatella, a agência responsável pela aplicação da Lei dos Meios, fez a sua parte.
Num sinal de que o governo estaria propenso a um armistício, ou até a um acordo de coexistência com o Grupo Clarín, Sabatella comentou inicialmente que, “à primeira vista”, os requisitos da lei estavam sendo cumpridos. No dia seguinte, afirmou que a decisão do conglomerado abre caminho para a aceitação de seu plano de adequação à Lei de Meios. A proposta prevê a redução do número de suas estações de rádio e de TV. As remanescentes seriam reagrupadas em seis unidades empresariais distintas e independentes.
De todo modo, o governo ainda não marcou data para a sua avaliação. A Casa Rosada não há de estar ansiosa para acabar com a insônia dos controladores do grupo que hostilizou anos a fio. De mais a mais, 11 outras empresas de comunicação também apresentaram os seus projetos de adaptação ao novo marco legal. Os conglomerados cujas propostas vierem a ser aprovadas terão um ano para concretizá-las. Na realidade, as mudanças farão pouco mais que institucionalizar o que já existe.
Em outubro passado, quando a Corte Suprema de Justiça declarou constitucional a Lei de Meios e a Bolsa de Buenos Aires suspendeu os negócios com as ações do Grupo Clarín, que em poucas horas haviam caído 6%, uma nota da empresa ressaltou que “mais de 80% dos meios audiovisuais (da Argentina) já respondem direta ou indiretamente ao governo”.