Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Machado de Assis é uma porcaria

A acusação de que os jovens brasileiros têm preguiça de ler é injusta e infundada. O fenômeno Harry Potter testemunha a favor. O Brasil assistiu boquiaberto a miúdas crianças devorarem avidamente infinitas páginas de um pesado volume cujas mãozinhas mal conseguiam sustentar. Da mesma forma, é mentira que criança não gosta de tomar remédio. Ao contrário, é preciso vigiar o frasco de xarope, pois o líquido colorido, cheiroso e docinho lhes aguça a atenção. O segredo do best seller infantil foi justamente este: transformar um amaríssimo remédio em deliciosa guloseima.

Na verdade, os pequenos não-leitores são vítimas de ignorantes imposições que fazem dessa atividade não uma prazerosa fonte de crescimento e informação, mas um enfadonho e torturante castigo. Um mau exemplo disso é a teimosia de desastrados professores, que insistem em empurrar Machado de Assis goela abaixo de uma criança de 4ª série. O resultado é que ela toma ódio desse e de outros gênios – aliás, de qualquer literatura.

E deve-se, no caso, dar razão ao educando, pois Machado é insuportavelmente inadequado para a idade. Seu vocabulário e suas construções frasais são vetérrimos, herméticos e sua filosofia inalcançável para tão incipiente formação. Os incautos mestres querem que a criança tome a bicicleta pela primeira vez e já saia pedalando com destreza. É preciso que se coloquem aquelas rodinhas laterais até que o novo ciclista aprenda a se equilibrar. Assim, um dos melhores livros de toda a literatura brasileira é o Escaravelho do Diabo, se lido aos 10 anos de idade.

Linguagem rasteira e ilustrações ajustadas

Em descompasso com o aluno, a escola teima no ensino cronológico das correntes literárias e respectivas obras. Mais proveitoso seria começar pela literatura contemporânea, até que um dia ele se interessasse por texto cheirando a mofo – cantigas de amigo e maldizer.

Mas há coisa pior: despreparados professores usam a leitura como instrumento de coação. Alguns, para recobrarem a disciplina e a ordem da sala, ameaçam seus alunos com atividades de leitura. O resultado é previsível.

Em suma, a criança e o adolescente não lêem porque a escrita é intragável. A começar pelo vocabulário, embaraçoso, incompatível com sua deficitária formação escolar.

Os dicionários são labirintos de linguagem floreada-pós-PhD, tão exatas e esclarecedoras quanto os poemas de Cruz e Souza. O aluno de 5ª série que se aventura a buscar um conceito no pai-dos-burros sai dali convicto de que o livro é mais burro do que pai. O verbete procurado é definido por um emaranhado de palavras mais difíceis do que aquela que ele procurava. A experiência assemelha-se à saga de um analfabeto que vive o burocrático jogo de empurra numa dessas destroçadas repartições públicas. Dessa consulta, ele só sai doutor em pingue-pongue. As editoras ainda não entenderam o que é dicionário verdadeiramente escolar: linguagem rasteira e ilustrações ajustadas ao prin-ci-pi-an-te.

‘De boa, véi’

Os pais dão sua contribuição: são o melhor exemplo do que não se deve fazer. Prostram-se mudamente diante da TV e dali só saem para dormir. Desconhecem que um dos melhores métodos de ensino e aprendizagem chama-se imitação. As crianças copiam o que vêem, ou melhor, o que não vêem. Se não flagram seus pais degustando um bom livro, não repetirão a experiência.

Mas a medalha de ouro cabe à imprensa. Autora dos mais ferozes ataques, ela insiste em tachar o estudante de alienado e de restringir-se a conteúdos acríticos, como horóscopo e futebol. Essa limitação é verdadeira e explicável: não existem publicações infanto-juvenis palatáveis sobre economia e política. Em que pesem as críticas da mídia, não se sabe de jornal que dialogue com a turma.

Os jornalistas, não obstante celebérrimos profissionais, desconhecem a regra mais elementar da comunicação: o texto deve se ajustar à língua de quem o recebe, pelo menos por algum tempo. Os fatos político-econômicos, principalmente, são apresentados tão-somente na perspectiva adulta. Esse desajuste não permite às vítimas do caos do ensino reconhecerem qualquer identidade com seu grupo social. Parece que tais acontecimentos afetarão exclusivamente o mundo adulto. A imprensa não se preocupa em traduzir o periódico para a língua escolar. Assim, para o adolescente, não há aplicação prática das informações em seu cotidiano. O estudante sequer entende o que está sendo noticiado. ‘De boa, véi, num rola não. Tipo assim… nem sei, fraga?’

Um jornal escolaaaar!

Habituados a elogios de colegas e de respeitadíssimos intelectuais, os jornalistas ou mesmo escritores não têm consciência de que suas obras de arte são modorrentas leréias. O leitor é excluído porque não dispõe de instrumento para decifrar tão enigmática composição. É como se ela estivesse redigida em japonês arcaico de trás para frente.

O jornalismo sério não aceita se rebaixar ao nível do incipiente leitor, tampouco demonstra paciência com seu desenvolvimento. A imprensa precisa, no entanto, descer do pedestal e ir ao encontro daquele que pretende como leitor. É preciso conquistá-lo, seduzi-lo, ‘mascá um 171’. É necessário formar seu gosto.

Mundo adulto, é preciso um jornal escolaaaar! Sei da tentativa bem intencionada de um jornal de grande circulação, no entanto o colorido e a meia dúzia de gírias não foram suficientes para agarrar os teens. É preciso recorrer a profissionais de outras áreas: pedagogos, psicólogos, educadores, bem como a jovens talentos jornalísticos inatos. Só assim será possível a resposta:

– Aí! De-mo-rô, meu.

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Professor