Nicholas Kristof, articulista da página de opinião do New York Times, tem um tema singular: a escravidão sexual. É sua paixão. Kristof se vê como vingador, e se tornou instrumento das vítimas. Como ele explica em sua mais recente coluna, foi recrutado por Mia Farrow, a mãe de Dylan Farrow, de 28 anos, e por seu irmão Ronan Farrow. Eles se tornaram aliados por seu envolvimento nos esforços de assistência a Darfur. Ele já escreveu antes em termos elogiosos sobre Mia e os dois viajaram juntos à África.
Agora, ele serve como canal para a carta de Dylan Farrow sobre a lembrança de um ataque sexual de 21 anos atrás de seu pai adotivo Woody Allen, então namorado de Mia. As alegações em questão receberam cobertura de mídia em 1992 e Allen foi eximido delas. Kristof diz que deveríamos presumir que ele não seja culpado, mas acrescenta: “Quando as provas são ambíguas, será que precisamos nos erguer para celebrar um suposto molestador?” (Allen é celebrado pelos seus filmes, e não por ser um molestador, como Kristof parece insinuar.)
Kristof está servindo tanto como editor das alegações renovadas – ele publicou a carta de Dylan em seu blog – como quanto divulgador do caso, em sua coluna regular na página de opinião do jornal. Ele não oferece contexto – Dylan não é retratada de modo muito diferente das vítimas que o colunista defende – nem antecedentes ou pontos de vista alternativos. Kristof não explica que sua coluna está rebatendo uma detalhada e poderosa refutação pelo documentarista Robert Weide sobre a recente onda de tweets e insinuações de Mia e Ronan Farrow, postado no site Daily Beast.
O contexto desse escândalo requentado não está em um padrão de abuso ou nas disfunções continuadas de uma família célebre, mas sim nas demandas de uma campanha publicitária. Passados 21 anos, e depois de um longo silêncio, a história foi retomada. O ímpeto parece ser estabelecer Mia como celebridade ativista e lançar uma carreira pública para Ronan.
Campanha
A campanha começou na edição de novembro da revista Vanity Fair, com um perfil de Mia por Maureen Orth, velha amiga da atriz, no qual Mia revelava que o pai de Ronan talvez fosse Frank Sinatra, e não Woody Allen. Os termos do artigo certamente teriam sido negociados com antecedência. Em troca da cobertura positiva da imprensa ao seu trabalho de caridade e do tratamento bajulador ao seu filho, ainda desempregado, ela teria tido de concordar em voltar ao assunto do lendário escândalo. Voltar, e bem mais. O preço da publicidade que ela e Ronan receberam era, na verdade, Allen.
O artigo é uma peça de propaganda política. Orth é a autora do artigo da Vanity Fair em 1992 sobre a separação entre Woody e Mia, e sobre seu relacionamento com Soon-Yi, filha adotiva de Mia e sua futura mulher; o artigo também tratava das acusações de Mia sobre o abuso sexual de Allen contra Dylan – ou seja, exatamente o mesmo material das acusações atuais.
O texto é explícito, implacável. Mia: boa, ótima, nobre. Woody: malévolo, dúplice, perigoso. Nem a Mia ávida por aparecer na imprensa e determinada a se vingar, nem Allen, casado há muito e pai de filhas adolescentes, sempre dedicado ao seu trabalho, estão presentes no artigo.
Há algumas semanas, durante a cerimônia do Globo de Ouro na qual Allen recebeu um prêmio, Mia expressou seu desagrado no Twitter e Ronan escreveu sobre a acusação de ataque sexual. No artigo do Daily Beast, Weide respondeu com um trabalho de demolição do artigo da Vanity Fair, desconstruindo a cronologia, a oportunidade e as circunstâncias do ocorrido. Ele inclui o fato de que o irmão de Mia está preso por molestar crianças e que seu filho Moses não fala com ela e a acusa de “lavagem cerebral” contra ele.
Por isso, Mia buscou a assistência de seu amigo Kristof para que ele oferecesse um fórum para a carta de Dylan.
É uma história de transações de mídia interligadas e do cultivo de comparsas na mídia. Todos estão em busca de ganho. Duas décadas se passaram, mas a traição, separação e acusações de abuso sexual do caso Allen-Farrow subitamente estão tão vivas quanto no passado.
Eis uma certeza: quando você joga seus dramas pessoais na mídia, é sempre uma confecção. É sempre planejado. Tudo isso é ensaiado. É uma manobra técnica. Uma estratégia. Isso é manipulação. Isso é distorção.
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Michael Wolff, do Guardian