A garotinha Mafalda completa 50 anos de tirinhas inconformistas, e seu espírito rebelde nunca esteve mais em voga num mundo em convulsão. “Muitas das coisas que ela questionava ainda não foram resolvidas”, sintetiza o cartunista Joaquín Salvador Lavado, o Quino, que deu vida a ela de 1964 a 1973.
A data foi celebrada nesta edição do Festival Internacional de Angoulême, o mais importante evento do mundo dos quadrinhos. “Às vezes me surpreendo com o fato de algumas tiras feitas há mais de 40 anos ainda serem aplicáveis hoje”, explica o autor, de 81 anos, que se recusou a viajar para o evento por questões de saúde.
A cada ano, cerca de 200 mil ilustradores, roteiristas, editores e apaixonados pelas histórias em quadrinho reúnem-se na aprazível cidade para celebrar o gênero. Nesta edição, foi possível visitar uma réplica do apartamento em que vivia Mafalda e da sala de aula em que ela lançava suas frases que pulsavam sinceridade. Também estavam por lá seus companheiros Manolito, Felipe, Susanita e Miguelito.
Aliada a essa recriação do mundo, que reflete a classe média progressista argentina dos anos 1960, a organização reuniu ainda tiras originais, reproduções e materiais que serviram de inspiração ao desenhista da célebre menina de seis anos que usa um laço na cabeça e detesta sopa. “O que me surpreende é ver que minha obra se desenvolveu desde sua publicação até o dia de hoje, e que boa parte dos temas, para não dizer todos, continua atual e compreensível”, explica o ilustrador.
Uma garota idealista e sincera, Mafalda nunca se calou diante da inquietude que lhe causava um mundo adulto que não lhe oferecia respostas satisfatórias, algo que persiste até o século 21. E, mesmo que seja só uma tirinha, como insiste seu criador, traduz matizes da personalidade daquele que a fez. Quino sempre se autodefiniu como um “pessimista” que manteve sempre viva a “ilusão de que sua obra servia para mudar algo”.
Prêmios do Festival
Outra criança conhecida pela fala inocente que traduz verdades pungentes da sociedade, o protagonista de Calvin e Haroldo, do norte-americano Bill Watterson, rendeu ao autor o grande prêmio do Festival deste ano. Nas tiras, publicadas entre 1985 e 1995, ele relata as aventuras de um menino e seu tigre de pelúcia – que é bastante real para ele. Em todo o mundo, a compilação do título já vendeu mais de 30 milhões de exemplares.
Watterson, de 56 anos, encerrou sua carreira com Calvin, afirmando que, com ele, havia alcançado todos os seus objetivos como quadrinista. Em Angoulême, ele venceu o japonês Katsuhiro Otomo, de Akira, e o britânico Alan Moore, de Watchmen. Também roubou a cena do holandês Willem, conhecido por suas ilustrações para publicações francesas como a revista Charlie Hebdo ou o jornal Libération.
Depois de estudar ciências políticas, o pai de Calvin começou a carreira como chargista político, mas logo abandonou essa vertente de sua profissão e passou às experimentações, até que, em 1985, publicou a primeira parte de sua obra mais aplaudida. Tímido e purista, manteve-se longe dos holofotes e criou princípios fortes para sua criação. Desde o princípio, recusava-se a permitir que fossem criados produtos com a imagem de seus personagens ou que fosse feita uma adaptação animada. Mais adiante, abandonou Calvin e Haroldo para dedicar-se à pintura e à família.
O prêmio de melhor álbum do ano foi para Come Prima, do italiano Alfred, que tomou o lugar de Quai d’Orsay: Chroniques Diplomatiques, vencedor no ano passado, com desenhos de Christophe Blain e roteiro de Abel Lanzac, pseudônimo do diplomata Antonin Baudry.
O título premiado é um road-movie em forma de quadrinhos no qual um autor rende homenagem ao cinema italiano dos anos 1970 através da história de um antigo “camisa negra” (militante fascista), incompreendido por seus aliados e por seu irmão.
O prêmio especial do júri foi para La Propriété, da israelense Rutu Modan, e foi eleita melhor Fuzz & Pluck, do norte-americano Ted Stearn.