Foi na noite de Natal, acompanhado de sua família, “bem classe média”, que Walcyr Carrasco percebeu de vez a existência de uma torcida para que Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) ficassem juntos em “Amor à vida”. Meses antes, o autor já havia decidido quebrar um tabu com o folhetim que marcou a sua estreia no horário nobre da Globo: levar ao ar um beijo de amor entre dois homens no último capítulo. Exibido no dia 31, o desfecho da trama mostrou o tal carinho entre o sushiman e o vilão regenerado, personagens alçados ao posto de casal principal da novela.
O beijo que entrou para a história das telenovelas brasileiras foi resultado de um romance muito bem pensado pelo autor para angariar a aceitação do público. Félix e Niko estão entre os destaques de um novelão de 221 capítulos marcado por muitas reviravoltas e personagens que mudaram radicalmente de comportamento. Ao longo dos últimos meses, Walcyr, de 62 anos, vivenciou a rotina de escrever — sempre tarde da noite, como prefere — o programa mais visto e comentado da TV.
Jornalista, autor de novelas e peças de teatro, com 60 livros lançados, ele chegou a dormir em cima do teclado ao criar histórias de “Amor à vida” “praticamente dopado” por remédios para aliviar a dor que sentiu após a extração e o implante de cinco dentes, em meados do ano passado. Dizendo-se de luto pelo fim da novela, Walcyr fazia a primeira refeição do dia às 15h30 quando recebeu, na semana passada, a Revista da TV em seu apartamento carioca — ele vive entre Rio e São Paulo.
O autor detesta acordar cedo e mostra sua face “gente como a gente” ao comentar o alto custo de vida das duas cidades onde vive. Ele ainda não se desligou do recente trabalho. Domingo passado, jantou com Mateus Solano e sua mulher, a atriz Paula Braun, também do elenco da novela, num restaurante do Leblon. O ator era um dos poucos que já sabiam sobre o beijo, planejado sob total sigilo.
Nesta entrevista, parte da série com autores de novelas iniciada pela Revista da TV em janeiro, o criador de tramas como “O cravo e a rosa” (2000), “Caras & bocas” (2009), em reprise atualmente nas tardes da Globo, e da mais recente versão de “Gabriela” (2012), conta detalhes sobre a aprovação e a gravação da cena do beijo. Ele esclarece boatos, como a fama de ser vingativo com atores que não seguem à risca o texto que escreve. E comenta ainda os sucessos e os percalços da carreira como autor de novelas, iniciada com a “Cortina de vidro”, exibida pelo SBT em 1989.
Por que deixou o beijo para o final da novela?
Walcyr Carrasco – Sempre quis deixar para o último capítulo porque sabia que seria uma bomba, algo que iria surpreender a sociedade.
Como surgiu a iniciativa de exibir a cena?
W.C. – A imaginação de todo mundo é maior do que a realidade. Não tive nenhum problema em relação ao beijo. Eu tinha uma história e, há quatro meses, fui ao diretor-geral de entretenimento (Manoel Martins) e falei: “Acho que está na hora desse beijo acontecer porque a história está pedindo”. Naquele momento, o casal Félix e Niko ainda não tinha acontecido com força. Mas a questão da família estava presente entre Niko e Eron. O beijo poderia ter sido entre o Thiago e o Marcello Antony. Eu propus um beijo de despedida entre o casal, algo do dia a dia, de pessoas que estão juntas e dão um beijo quando um deles vai trabalhar.
Já imaginava que o beijo seria aprovado quando foi conversar com a direção da emissora?
W.C. – É importante dizer que essa não é uma decisão que se toma sozinho. Isso afeta toda a estrutura da Globo. Mas a emissora vive um processo de atualização neste momento de sua história e está buscando uma sintonia fina com a sociedade. Dois dias depois, o Manoel me respondeu com um OK, caso a cena fosse feita dessa forma que falei.
A novela abordou diferentes formações familiares. Por que escolheu mostrar o casal gay nesse contexto?
W.C. – Brinco muito que o movimento LGBT (Lésbicas, gays, bissexuais e travestis) busca cada vez mais a família, o casamento. Todos os valores que, de certa forma, compõem a vida da sociedade. Por isso propus o beijo dentro de um contexto familiar.
A emissora fez algum tipo de pedido?
W.C. – A postura da emissora era de manter sigilo e respeito. E a minha também.
Essa história de que você recebeu carta branca da emissora para decidir se teria ou não beijo é verdade?
W.C. – Hoje em dia há uma grande parcela da imprensa extremamente fantasiosa e reacionária. Principalmente a feita na internet, que cria um movimento de especulação em cima das novelas. E que não é do bem. Essa história de carta branca nunca existiu. Foi uma invenção. O que houve é fruto de uma decisão que eu, como autor, levei para a empresa. Mas se falasse com a imprensa naquele momento sobre isso, a especulação teria sido ainda mais absurda.
Como conseguiram manter o sigilo?
W.C. – Quase ninguém sabia que haveria o beijo. Combinei pessoalmente com o Mauro Mendonça Filho (diretor-geral): “Quando aparecer tal sinal no texto, será o beijo”. Quem quer que tenha tido acesso ao capítulo não notou. O código foi uma linha de asteriscos.
Quantas versões do beijo foram gravadas?
W.C. – Gravamos várias versões: uma conservadora, uma moderada e uma agressiva. Foi assim que me expressei para explicar o que queria. Numa linguagem de investimento financeiro. Na vida bancária, sempre opto pelo moderado, e na novela foi assim também. Achava que não poderia ser a versão conservadora, que era pouco mais do que um selinho, nem a agressiva. Por um simples fato. Eles estavam se despedindo, não indo para a cama. Esse outro beijo (de língua) é dado quando você está indo para a cama. Não era a situação. Foi gravado, sim, até para a gente ter opções. Mas sabia que não seria esse. Nem sei dizer quantas vezes eles gravaram porque fizeram em vários ângulos. Tinha: opção A, com meio corpo, A só com rosto, e por aí vai…
Quis ver a cena antes?
W.C. – Claro. Até para discutir qual seria o beijo que representaria a situação que a gente queria. A decisão foi unânime. Eu queria um beijo tradicional, mas de amor. Era essencial. Era um momento do casal que não pressupunha um beijo mais intenso. Acho que o amor promove aceitação, e a novela falava disso. Mas a gente também precisava da aceitação do público.
Quando foi a escolha?
W.C. – No dia do último capítulo. Tenho horror de acordar cedo, mas tinha que ver o quanto antes porque a cena precisava ser editada. Acordei às 8h, saí de casa um caco. Mauro, que dirigiu a cena, e o Wolf (Maya, diretor de núcleo) estavam presentes. Vimos juntos e levamos nossa opção à direção. É um assunto sério. Quando você faz uma coisa pioneira, tudo tem que estar de acordo com a emissora. O Manoel Martins é o diretor de entretenimento e tinha que participar. Ele fechou com o que a gente tinha fechado.
Existia entre vocês a sensação de que fariam História?
W.C. – Eu tinha o sentimento de que ia fazer História. Sei que daqui a 50 anos em qualquer livro sobre a TV brasileira, vai ter esse beijo. Tenho uma relação mais próxima com o Mateus, gosto muito dele como pessoa também. Quando falei para ele, em segredo, disse que entraria para a história da TV.
Quando conversou com o Mateus já havia decidido que Niko ficaria com Félix?
W.C. – Sim, mas já tem um tempinho que contei a ele. A história estava em branco quando comecei a ver a questão do beijo, mas foi tomando outros rumos. Niko tinha se separado do Eron. Naquele instante o Félix tinha ficado pobre e começado a se redimir.
Você construiu o romance de Félix e Niko para torná-los o casal principal da trama?
W.C. – A estrutura do romance deles é a de um namoro hetero de novela. Eles se conhecem, brigam sempre no final do papo. De repente, Eron faz uma fofoca para separar os dois. Niko, que cuida de duas criancinhas com todo amor, acredita que Félix está com outro, sofre. Tudo proporcionou um desfecho natural. As pessoas já viam o romance com tranquilidade.
Quando percebeu que tinha acertado?
W.C. – Tive certeza absoluta de que estava no caminho certo na noite de Natal, em família. A gente faz um Natal bem classe média, com amigo secreto… E, de repente, na sala, a discussão das mulheres era Félix e Niko. A minha sobrinha Andrea disse: “Vocês têm noção de que há 4 ou 5 anos a gente não estaria discutindo isso?”. E eles não estavam falando da novela porque eu estava lá. Não conto nada da trama nem para a família.
Como define os rumos da história?
W.C. – Sento e assisto à novela todas as noites, como se fosse o público. E desenvolvo um diálogo com os atores através do que vejo. Danielle Winits, por exemplo, foi hábil. Viu por onde iria brilhar e brilhou. Acho que o beijo aconteceu porque tínhamos dois astros nos papéis. Tanto que, ao procurar a mulher para fazer a Amarilys, pensei na Danielle. Ela faria bem o que chamo de “bruxa de bicha”, ela tem essa cara.
Costuma levar em consideração o que é dito na web?
W.C. – Eu não me acostumei com isso. O autor não pode dar ouvido ao que falam. A internet ainda não expressa a opinião da totalidade da população brasileira. Mas dá para acompanhar a repercussão de uma cena. Durante a novela, a Amarilys estourava na internet quando aparecia. Mesmo que sejam tuítes contrários, é sinal de que a personagem pegou.
E as cobranças de que muitas das tramas de “Amor à vida” não eram verossímeis?
W.C. – No Twitter, as pessoas escrevem: “Essa novela só tem maldade, e as coisas não dão certo”. Como se a TV fosse a culpada. E a literatura? Do que se trata? Da alma humana, das contradições, dos desencontros… A novela tem vilões e histórias de amor que não dão certo, como na literatura. Só o Pequeno Príncipe é bonzinho o tempo todo.
Muitos acusaram o texto da novela de ser didático em alguns momentos…
W.C. – A novela se passa num hospital, e achei que tinha que trazer mensagens sociais, como a doação de órgãos. Mas não se pode confundir a novela com uma aula ou um documentário.
Por que abordar temas variados, como alcoolismo e o vírus HIV, sem aprofundar essas discussões?
W.C. – Não dava para explorar todos os temas. Eu quis tocar neles, falar que existem e, talvez, causar um ponto de curiosidade.
“Amor à vida” foi esticada e terminou com 221 capítulos. Foi sofrido?
W.C. – Não tenho problema com isso. Adoro escrever, seja o que for. Seja livro, um texto para teatro… E adoro escrever novela. “Caras & bocas” teve 232 capítulos. “Morde & assopra” foi a única que não foi aumentada e teve 180. O projeto inicial de “O cravo e a rosa” era de 90 capítulos e acabou com 221. Lembro que tive que criar um hotel para ter um cenário para botar mais personagens.
Como é o seu processo de criação?
W.C. – Tenho uma velocidade muito grande para escrever. Sento para criar o capítulo à noite, após a exibição da novela. Escrevo em 4 horas, no máximo. Não gosto de acordar cedo. Durante o dia penso na novela. Preciso de um período de calmaria. Não faço escaleta. O meu método de trabalho é o caos. Tive agora quatro colaboradores. O capítulo vai montado, mas deixo uns buracos de cenas para eles escreverem.
É verdade que não tolera ator que altera seu texto?
W.C. – Eu odeio (diz, com ênfase nesta palavra) ator que usa caco. É uma prova de que ele não é bom, que não consegue botar intenção naquilo que está escrito e precisa usar muletas, falar do seu jeito. Se um ator diz o texto sempre do jeito dele, faz tudo sempre igual.
O que faz com os atores que usam cacos?
W.C. – Eu deixo de me interessar pelo personagem. Houve um caso em que parei de escrever para o ator, que virou quase um figurante.
Você matou a personagem da Marina Ruy Barbosa porque ela não cortou o cabelo?
W.C. – Neste caso, não tinha o que fazer. Foi o caso de uma atriz que subverteu a trama. A personagem da Marina morreu porque não tive alternativa. Ela tinha uma doença fatal. Para se curar, teria que mostrar as consequências físicas do tratamento. Já tinha dito que ela estava perdendo cabelo em cena.
Voltaria a trabalhar com a Marina?
W.C. – Não devemos dizer nunca. As pessoas mudam, se transformam. Com atores que apoiaram seus personagens em cacos, não voltei a trabalhar.
Voltando ao início de sua carreira. Como lidou quando a sua parceria com Walter Avancini, inciada em “Xica da Silva”, foi interrompida com a morte do diretor durante “A padroeira” (2001)?
W.C. – Ele era meu grande parceiro. Na época de “Xica”, a gente se falava todos os dias ao telefone. Sua morte foi um choque e perdi o passo. A novela não foi um fracasso, mas deu menos audiência para a época.
Como foi a experiência de substituir Benedito Ruy Barbosa nos últimos capítulos de “Esperança”, em 2002?
W.C. – Peguei a novela na sexta e tinha que escrever o capítulo de terça. Era uma trama a que eu não assistia todos os dias. Fiz do meu jeito e acho que Benedito tem uma mágoa grande.
Quais os maiores problemas que enfrentou durante “Amor à vida”?
W.C. – Tive um problema nos dentes durante a novela, sentia muita dor. Tomava remédio de duas em duas horas e cheguei a dormir em cima do teclado.
Qual é a sua novela preferida?
W.C. – Sou contra ter novelas ou livros preferidos. A gente é educado para ser sempre o melhor. E você começa a botar a sua vida para disputar com ela mesma. Depois de uma certa idade, você não é o mais bonito da festa, nem o mais bem vestido. Tem que aprender que não é necessário ser o melhor. Nem o melhor autor do Brasil. Cada trabalho dá uma satisfação.
Como lida com o sucesso?
W.C. – Certas coisas se tornam um vício na vida. E o sucesso não pode virar isso. Aprendi olhando pessoas que entram nessa.
O que pode adiantar da sua próxima novela?
W.C. – Será uma comédia de época para o horário das 18h. Da próxima vez, quero ter menos personagens para não ficar em dívida com ninguém. Eliane Giardini e José Wilker são grande atores e mereciam mais em “Amor à vida”. Não quero mais ficar em dívida. Grande atores terão papéis para seu tamanho.
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Zean Bravo, do Globo