Richard Seaver, uma lenda do ramo editorial americano, era apenas um jovem dos Estados Unidos morando em Paris quando descobriu um gênio. Seaver (1926-2009) tinha ido estudar na Sorbonne nos primeiros anos do pós-guerra, preparava uma tese complicada sobre James Joyce e também editava, com amigos, uma revista literária chamada “Merlin”. Um dia, passeando, ficou intrigado com um livro exposto numa vitrine. Era o pequeno romance de um irlandês cujo nome lhe pareceu familiar. Ele o comprou e descobriu que fora escrito originalmente em francês. Seaver, também ele um candidato a romancista e poeta, foi abduzido pela prosa simples e espantosa do autor, de tal forma que passou a sofrer de um bloqueio criativo. O nome do escritor era Samuel Beckett (1906-1989). Seaver lançaria Beckett nos Estados Unidos e os dois selariam uma amizade para a vida inteira.
Essas aventuras de editor iniciante numa Paris despojada dos anos 50 foram relatadas por Seaver num livro de memórias precioso, “A Hora Terna do Crepúsculo – Paris nos Anos 50, Nova York nos Anos 60: Memórias da Era de Ouro da Publicação de Livros”.
Seaver tirou o título de uma das cartas de Van Gogh para o irmão, Theo. Era uma frase poética de Émile Zola que Van Gogh usara para se referir às pinturas em que estava trabalhando. Serve como metáfora para alguém que está escrevendo suas memórias no fim da vida. Mas o editor morreu antes da publicação do livro e o título ficou esquecido num pedacinho de papel guardado dentro do bolso de um paletó, até que a filha o encontrasse.
Mas foi Jeannette, a viúva do autor, quem teve de encarar a difícil tarefa de transformar um manuscrito de 900 páginas em um livro de menos de 600. “Não foi fácil”, conta. “Principalmente porque eu comecei a trabalhar no manuscrito logo depois da morte de Dick. Rever nossa vida naquele tempo crítico foi doce e amargo.” A história de amor entre Dick e Jeannette rende algumas das passagens mais bonitas do livro. Ela, de uma família de intelectuais franceses, violinista talentosa, bem-humorada e bastante madura. Ele, um americano falando francês sem muito sotaque, descobrindo o mundo em Paris e quebrando a cabeça para escrever uma tese em francês sobre um dos luminares da literatura moderna. O casamento foi um sucesso.
Estreita intimidade
Relembrar os tempos idos é que foi complicado. “Eu me forcei a pôr o ‘chapéu de editora’ e ser estritamente profissional, tentando não deixar que meus sentimentos pessoais atrapalhassem. Cortar cerca de 450 páginas, no entanto, foi horrível: elas eram muito boas.”
O livro é bom não só porque é bem escrito (e Jeannette, como editora que também é, sabe bem do que está falando). “A Hora Terna” evoca uma época extinta, quando Paris ainda era um paraíso para os americanos, o oceano entre os continentes impunha dificuldades na fluidez da literatura e o conservadorismo campeava dos dois lados. Nos Estados Unidos, o macarthismo estava à toda, caçando comunistas por toda a parte. Na França, conservadora por natureza apesar das aparências, ainda era possível publicar livros mais transgressores, embora o Marquês de Sade, por exemplo, ainda fosse um autor proibido mesmo depois de 200 anos.
O trabalho editorial de Seaver, que começara na “Merlin”, ia contra todas essas dificuldades. E suas primeiras traduções de Beckett, lidas nos EUA, atraíram a atenção de um outro heroico batalhador dos livros: Barney Rosset, o mítico editor da Grove Press, para a qual Seaver trabalharia durante 11 turbulentos anos na sua volta para Nova York.
A Grove enfrentava processos judiciais em fila, tanto por publicar livros proibidos como “O Amante de Lady Chatterley”, de D.H. Lawrence, quanto por encarar jovens desafios considerados pornográficos, como “A História de O”, hoje um clássico, escrito por Anne Desclos sob o pseudônimo de Pauline Réage. Por tudo isso, incluindo os romances de Henry Miller e as confissões alucinadas de William Burroughs, a Grove era presença certa nos tribunais.
“A Hora Terna do Crepúsculo” conta os bastidores de todas essas aventuras, além de retratar com grande intimidade figuras tão excepcionais como o próprio Beckett, Jean Genet, Eugéne Ionesco e Burroughs. Todos editados bravamente nos EUA graças à devoção de Seaver, um trabalhador dos livros.
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Cadão Volpato, para o Valor Econômico