Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As práticas nocivas do fotojornalismo contemporâneo

Certa vez, o fotógrafo norte-americano Lewis Hine (1874-1940) afirmou: “Embora as fotografias não possam mentir, os mentirosos podem fotografar”. Declaração atualíssima, considerando, por exemplo, um conjunto de nocivas práticas cometidas no âmbito do fotojornalismo mundial contemporâneo. Problemas éticos nas edições, nos cortes, nas manipulações e nas adulterações de imagens vêm se tornando constantes, interferindo, assim, na credibilidade dos processos comunicativos e de memória. Os avanços tecnológicos estão potencializando a artimanha humana de criar simulacros, perdendo-se de vista o que pode ser considerado real em termos mais autênticos.

Em torno da fotografia, existe uma aura que traz à lua a ideia de que fotografar significa eternizar o momento que poderá ser contemplado por futuras gerações. Existe, ainda, o senso comum cujo teor anima a ideia de que no fotojornalismo se encontra a documentação absoluta da verdade e a reprodução exata da realidade. Em A Câmara Clara (1984), Roland Barthes vai desarticular tal propósito, ao destacar que somente para um olhar desatento, a fotografia terá única e absolutamente este papel. Um olhar investigativo e observador deve, por sua vez, questionar a própria existência da fotografia e discutir sua importância como aparelho reprodutor de ideologia. A respeito, o fotógrafo catalão Joan Fontcuberta traz, em El Beso de Judas: fotografia y verdad (1998), um pensamento impactante, digno de grande atenção: “A fotografia mente sempre, importa saber o que podemos fazer com esta mentira.”

Mesmo diante de tamanha complexidade, adulterações de imagem prejudicam o propósito da fotografia como instrumento pedagógico de conscientização da realidade na qual vivemos, uma vez que ela auxilia na percepção de erros e avanços do passado, exercendo importante papel na construção da memória coletiva. Cabe, ainda, salientar que pela fotografia realiza-se um registro histórico do momento, de um instante que não poderá ser reproduzido novamente, considerando a época, os costumes e as tradições que ficam eternizados no instante fotografado. É, por isso, única e de caráter documental importante. Logo, os citados alertas de Hine e Fontcuberta se encontram pulsantes na ordem do dia, uma vez que a verdadeira busca do real, atribuída muitas vezes à fotografia, depende, de fato, do princípio ético de educadores e fotojornalistas, os quais têm a responsabilidade de estimular a reflexão e a lapidão da consciência daqueles que irão registrar nosso cotidiano, por meio de imagens fotográficas.

Caminhos tortuosos

É curioso notar que o reenquadramento abusivo presente em imagens manipuladas de forma deturpada e tendenciosa tem raízes históricas capazes de sustentar a seguinte tese: a Geração Photoshop já existia antes do computador ser inventado. Lembremos que o Photoshop, criado pelos irmãos estadunidenses Thomas e John Knoll e lançado pela Adobe em 1990, é um aplicativo de grande destaque no mundo da fotografia e do design gráfico, uma vez que se trata de um software específico para edição de imagens. Acontece que o costume de retocar a imagem é coisa antiga. Lendo A invenção do Brasil: ensaios de história e cultura (2007), de Afonso Carlos Marques de Santos, encontramos narrativas interessantes sobre a adulteração visual. Conta o historiador que “não foram poucas as vezes em que se ergueram cenários neoclássicos para ocultar a cidade colonial, como o pavilhão de madeira erigido em 1818 para a coroação de d. João VI, todo cercado de varandas, com salas revestidas de veludo e seda”.

Jean-Baptiste Debret (1768-1848), uma das principais figuras da Missão Artística Francesa, de 1816, que fundou a Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, registra, no seu Viagem pitoresca e histórica no Brasil (1834-1839), acontecimento interessante, envolvendo a elaboração do pano de boca do Teatro da Corte por ocasião da coroação de d. Pedro I: “Pintor de teatro, fui encarregado de nova tela, cujo bosquejo representava a fidelidade geral da população brasileira ao governo imperial sentado em um trono coberto por rica tapeçaria estendida por cima de palmeiras. A composição foi submetida ao primeiro-ministro José Bonifácio que a aprovou. Pediu-me apenas que substituísse as palmeiras naturais por um motivo de arquitetura regular, a fim de não haver nenhuma ideia de estado selvagem. Coloquei então o trono sob uma cúpula sustentada por cariátides douradas.”

Tratava-se de ocultar, a todo custo, os aspectos que pudessem revelar “estado selvagem”. A implantação do Império devia ser acompanhada da importação de um imaginário europeu identificado a uma racionalidade que não correspondia às bases reais de sustentação da nação. Inventado a partir das classes dominantes, o país imaginário voltava as costas para o país real. Não é nova, portanto, a discussão acerca da definição de real na produção de imagens. É de comum conhecimento o famoso ditado: “as aparências enganam”. O poeta Paulo Leminski sacode as estruturas do dito provérbio, em Catatau (1975): “As aparências enganam, mas, enfim, aparecem.” Desse modo, pontua-se de modo incisivo sobre a incerteza da confiabilidade do que captamos visualmente, isto é, as imagens.

A Geração Photoshop, quando envereda por caminhos tortuosos e dissimulados em relação ao tratamento da imagem, obscurece o grande papel do fotojornalismo como instrumento para alcançar efetivamente a realidade. Meio fundamental de evidenciação do real, a fotografia possibilita aos olhos o que a vida porventura restringe por alguma razão.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor das faculdades Fortium e JK, no Distrito Federal, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG