Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Urubus na carniça

Morto após ser atingido durante uma manifestação no Rio de Janeiro, Santiago Andrade se tornou a carniça na qual os urubus da grande mídia avançam sem piedade, instrumentalizando o sofrimento alheio em nome de interesses maiores. A dor da família e dos amigos, especialmente mulher e filha, é insuperável e incontornável. A dor de todos nós é a da perda estúpida de mais uma vida humana, e se manifesta, em alguma medida, como sintoma do fracasso da sociedade em que vivemos – e que as manifestações nas ruas denunciam.

A morte do cinegrafista é, evidentemente, triste e lamentável. Mas não é um ataque à democracia, como os veículos da grande mídia têm tentado nos convencer. Pelo que tudo (que se tornou público) indica, o mais provável é que tenha sido um rojão disparado por um manifestante. Assim, a morte não é um ataque à democracia primeiro porque, evidentemente, o cinegrafista não era o alvo de ninguém. Diferente das situações em que, no início das manifestações, jornalistas foram diretamente agredidos, exatamente por serem jornalistas e representarem grandes empresas de comunicação, agora claramente não havia um plano baseado numa hostilidade pré-concebida. Foi Santiago Andrade – e isso é concreto o suficiente –, mas poderia ter sido qualquer um. Portanto, mesmo se a grande imprensa fosse de fato guardiã de valores e princípios democráticos – e ela está longe disso, principalmente no Brasil –, esse discurso seria vazio.

Jornalista é trabalhador

Como desdobramento desse primeiro ranço corporativista, os jornais e mesmo algumas entidades ligadas à comunicação e ao jornalismo aproveitam o caso para denunciar que o Estado não garante proteção aos jornalistas, como se essa fosse a sua função. É preciso cobrar que o Estado garanta a proteção da população em geral, de todos os cidadãos, o que, no contexto do qual tratamos, significa, antes de tudo, garantir o livre direito de manifestação, cerceando – e não promovendo ou provocando – a violência. Essa situação incontornável, em que ninguém mais sabe dizer que parte reage a quem, é, entre outros aspectos muito mais complexos, que não caberiam neste texto, fruto desse desajuste inicial, de um comportamento agressivo e antidemocrático das polícias e dos governos, incentivado pela grande imprensa. O que a culpabilização do Estado pelos riscos que os jornalistas correm – e com eles a democracia e a tão conclamada quanto abstrata liberdade de imprensa – esconde é que o jornalista é um trabalhador, como outro qualquer. É empregado de grandes empresas lucrativas que, ao promovê-los como representantes do interesse coletivo, envaidecidamente, nublam as relações de trabalho e, consequentemente, toda a consciência necessária para a luta pelos seus próprios direitos como trabalhadores. Jornalista que trabalha 12 horas por dia, correndo atrás da notícia, buscando a fonte, editando ou escrevendo a matéria no trânsito, a caminho da redação ou da TV, é herói, cidadão engajado no seu papel social de informar e esclarecer a sociedade. De tão especiais que são, julgam não se enquadrar na famosa contradição entre capital e trabalho.

Mas se pudéssemos olhar por lentes menos obscurecidas e vaidosas, veríamos que são nada mais do que trabalhadores superexplorados que se matam para aumentar os lucros de grandes empresários, que fazem da indústria da informação um negócio com importantes retornos econômicos diretos e indiretos, por meio da influência na opinião pública. Foi isso que o sindicato dos jornalistas do município do Rio de Janeiro, numa interessante mediação entre a defesa dos interesses corporativos que caracterizam as instituições sindicais e os interesses mais gerais da sociedade a que esses profissionais servem, destacou na nota e nas ações que tomou desde o início das manifestações, quando a participação da imprensa passou a merecer cuidados. Em outras palavras – e isso sou eu que digo, não o sindicato –, quem tem que garantir a segurança de jornalista que está na rua a trabalho, no que essa segurança se diferenciar daquela voltada para toda a população, é a empresa para a qual ele trabalha. A pergunta, portanto, é por que Santiago Andrade e tantos outros profissionais estão nas ruas sem capacete e colete a prova de balas – uma reclamação antiga dos repórteres que cobrem operações policiais, por exemplo, mas que nunca repercutiu nos “aquários” das grandes redações.

Diante disso, não foi surpresa ver o ataque direto e sem escrúpulos que essa grande imprensa fez ao sindicato. Matéria publicada no Globo de 11 de fevereiro diz que “sindicato dos jornalistas é alvo de críticas”, assim mesmo, de modo impreciso, sem informação, irresponsavelmente. Segundo o texto, “vêm crescendo nas redações e nas redes sociais” – sujeito oculto? – “críticas” ao sindicato que, “além de demorar para se manifestar contra a agressão, emitiu nota na qual, no lugar de cobrar das autoridades ampla investigação e punição dos culpados, preferiu focar nas supostas más condições de trabalho dos jornalistas e condenar as empresas pela falta de equipamentos de segurança adequados”. Além de presumir, sem dados nem qualquer objetividade, o que o sindicato deveria fazer – o que é um pecado mortal para o bom jornalismo que eles mesmos pregam nos seus manuais de redação –, a matéria não diz uma linha sequer sobre as tais más condições de trabalho, tratadas como “supostas”.

Ataque político

Pela sequência do nosso texto, esse ataque rasteiro pode parecer apenas uma mostra de poder corporativo dos empresários da comunicação, diante de uma cobrança trabalhista. É isso, mas não só. Afinal, no Brasil, a mídia não perde a viagem nunca. Por isso, no parágrafo seguinte, a notícia imprecisa mostra seu contexto e razão de existência mais universal, informando, como um aposto entre vírgulas, quase despretensioso, que a presidente do sindicato foi assessora do deputado estadual Marcelo Freixo. Em poucos dias, essa foi a terceira investida dos veículos das Organizações Globo na tentativa de envolver o deputado na morte de Santiago Andrade. Dias antes, a Globo tinha dado um furo de reportagem, com repercussão até no Fantástico, de que o deputado conhecia e tinha oferecido assessoria jurídica ao suspeito de detonar o rojão.

A informação, imprecisa, não comprovada e negada pelo deputado, tinha sido ‘vazada’ pelo advogado do rapaz que é tido como coautor do crime, que, coincidentemente, foi advogado de um dos maiores milicianos do Rio de janeiro, preso a partir do relatório produzido por Freixo quando presidiu a CPI das milícias na Assembleia Legislativa do estado. Mas essa informação – de quem era o tal denunciante – a emissora – e os jornalistas – não apurou. No mesmo dia 11, o jornal Globo “denunciou” – quanto jornalismo investigativo! – que um assessor do mandato de Marcelo Freixo trabalhava também no Instituto de Defesa dos Direitos Humanos (DDH), entidade que tem atuado na defesa de manifestantes arbitrariamente presos nas manifestações do Rio e que em algum momento teria defendido Fábio Raposo, o “coautor” que já está preso. Embora com menos destaque, o jornal o Dia também registrou essa coincidência, que, além de não ser nenhuma ilegalidade, tendo em vista que o trabalho no DDH é voluntário, é absolutamente coerente, já que a principal luta pela qual o deputado é conhecido é a defesa dos direitos humanos, o que torna óbvio que ele se cerque de assessores ligados a essa pauta.

Violação de direitos

O ataque não é por acaso. Primeiro, fragiliza-se o único político de esquerda que, com sua reconhecida trajetória e diante da insatisfação social crescente da população do Rio de janeiro, representa um perigo aos planos eleitorais da dupla Cabral-Paes e aos interesses dos grandes grupos econômicos que os apoiam – o que inclui esses conglomerados de mídia. Parece até encomenda. Depois, mais uma vez para não se perder a viagem, culpa-se, sem escrúpulos de aderir e instigar um senso comum mais que conservador, a luta pelos direitos humanos pela morte que está comovendo o país. Com isso, abre-se rapidamente caminho para a legitimação e legalização de diversas modalidades de violação de direitos. Diante da pressão da “opinião pública” estampada em páginas e telas raivosas dos jornais e emissoras de TV, o Senado apressa-se a votar o PLS 499/2013, que cria o crime de terrorismo para dar conta da violência nas manifestações; generaliza-se a tipificação de organização criminosa; clama-se por uma ação mais “enérgica” do Estado nas manifestações (mais?), entre outros impulsos de momento, com consequências estruturais. E esse é o verdadeiro ataque à democracia.

A armadilha simplificadora da explícita manipulação midiática é levar a “opinião pública” a crer que quem propõe trazer a violência policial e governamental para o debate está a favor da violência indiscriminada; que quem zela pela preservação das conquistas – mínimas – do Estado de direito, denunciando o golpe dessas iniciativas que remontam à repressão ditatorial, que tentam coibir a participação pelo medo, está defendendo criminosos e, no calor deste momento, torna-se cúmplice na morte de Santiago Andrade.

A morte do cinegrafista, como a de outras vítimas diárias dessa sociedade, é um triste e incontornável capítulo dessa história, drama particular que dá concretude ao drama maior, que está na origem das manifestações. O que se espera é que, como legado dessa tragédia, os netos de Santiago Andrade – que não terão a oportunidade de conhecê-lo – e de todos nós se deparem com um mundo transformado, em que a paz se efetive como consequência da plena liberdade (política e material) das pessoas e não pelo silenciamento opressor das armas ou da lei.

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Cátia Guimarães é jornalista e doutoranda em Serviço Social