Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O homem que bola o que rola

Quando Carlos Henrique Schroder assumiu a direção-geral da Rede Globo, em janeiro do ano passado, uma das principais atrações da emissora era a minissérie “O Canto da Sereia”, sobre o assassinato de uma popular cantora de axé em pleno Carnaval. Schroder gostou tanto do que viu que ligou para o autor, George Moura, e o diretor, José Luiz Villamarin, responsáveis pelo programa. “Disse a eles que tinha achado [o trabalho] lindo e ousado”, conta o executivo. Em resposta, ouviu que a dupla tinha outro projeto para apresentar. “Devorei [a sinopse] em um fim de semana. No dia seguinte, chamei o Manoel [Martins, diretor de entretenimento] e lhe disse que tínhamos ouro em pó nas mãos.”

Exibida no mês passado, “Amores Roubados”, a minissérie que entusiasmou Schroder desde o esboço inicial, foi a atração central de um mês que contou com quatro novas produções em horário nobre na Globo, um indício do movimento que o executivo quer imprimir à emissora. “É uma transição permanente, com data de início, mas não de fim”, diz Schroder, um gaúcho de Santo Ângelo que completou 55 anos recentemente.

A nomeação foi anunciada em setembro de 2012, o que deu a Schroder – então diretor-geral de jornalismo e esportes da Globo – três meses para se preparar para o novo desafio. “Esse período me deu robustez. Eu recebia cópia de todos os e-mails dirigidos ao Octávio [Florisbal, seu antecessor] e todas as reuniões eram conjuntas”, diz o executivo, enquanto prova o orzotto de legumes, uma espécie de risoto feito com cevada em vez de arroz, preparado pela chef Flávia Quaresma.

Faz quase 40° C no Rio, mas na sala de almoço reservada no Projac – o centro de produção montado pela Globo no bairro de Jacarepaguá – a temperatura amena é reforçada pela tranquilidade do cenário em volta. O prédio, que Schroder pretende converter em um espaço de encontro para os artistas, é circundado por mata atlântica, e a vegetação parece ao alcance das mãos por causa das paredes com amplas vidraças da sala.

Schroder fala sem pressa, sentado à cabeceira da grande mesa que domina o espaço. Às vezes, por força do hábito, os olhos se voltam para a televisão fixada em uma das paredes, que permanece sintonizada na Globo, sem som.

– Como reagiu ao receber o convite?

– Em 2012, quando o Roberto Irineu [Marinho, presidente das Organizações Globo] me chamou para conversar, eu perguntei o que tinha motivado a escolha…

– E o que ele respondeu?

– Duas coisas. Primeiro é que ele queria alguém que preparasse a empresa para o futuro, que montasse uma equipe com um olhar na modernidade. A outra é que o diretor-geral precisava voltar a olhar para o conteúdo.

Só urgências

Schroder não poupa elogios ao antecessor Octávio Florisbal, que passou a ocupar um lugar no conselho de administração da Globo. Mas não é segredo que tanto Florisbal quanto Marluce Dias da Silva, que veio antes dele, tiveram uma atuação mais operacional, até por causa de questões conjunturais que demandavam mais atenção sob suas gestões. Com Schroder, é a primeira vez em 15 anos que o conteúdo volta a ser um tema central para o principal executivo.

“Amores Roubados” é emblemática dessa nova etapa porque fornece indícios dos caminhos pelos quais Schroder quer conduzir a Rede Globo. A história do “don Juan” nordestino que encontra a morte ao se apaixonar por uma de suas vítimas teve uma audiência média de 30 pontos no país, o equivalente a 57% de todos os televisores ligados no horário de exibição do programa. A razão dessa boa aceitação, diz Schroder, é que a série colocou uma narrativa sofisticada a serviço de uma história fácil de entender. O resultado é que nenhum público se viu excluído, a despeito do tratamento requintado dado à produção.

“O maior desafio [na TV] é atrair massivamente a população de um país tão diverso. E a linguagem é a grande dificuldade”, nota Schroder. “Temos de ser inclusivos; não focar [em um único segmento do público].” Na novela “Avenida Brasil”, exemplifica, a classe C foi retratada no núcleo central, mas o programa não foi dirigido somente a esse público. “Pelo contrário, foi a classe A que mais viu a novela.”

Na Globo, não há mais meta de audiência. O sistema – em vigor desde os tempos de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, que ocupou a direção-geral de 1980 a 1997 – foi revogado. “Audiência é consequência, não meta”, diz Schroder. “Não prego audiência como fator para definir um produto.”

Essa abordagem reflete sua carreira no jornalismo, iniciada na TV educativa, com passagem pelo grupo RBS no início dos anos 80 e, mais tarde, já na Globo, por programas como “Hoje”, “Jornal Nacional” e “Fantástico”. “Então, se você tiver uma crise no Uzbequistão, não vai falar [porque não dá audiência]?”

Para entender melhor a área de entretenimento, Schroder foi aos Estados Unidos várias vezes para conhecer de perto fenômenos como as séries de TV americanas, cuja popularidade teria levado ao que muitos, hoje, consideram uma nova era de ouro.

Na Globo, parte das produções será mais curta para abrir espaço a um número maior de programas. No ano passado, foram exibidos 12 novos produtos em horário nobre. Neste ano, serão 16. Exibidos no mês passado, “O Tempo e o Vento” e “Serra Pelada”, ambos longa-metragens convertidos em minisséries, tiveram três e quatro capítulos, respectivamente. A minissérie policial “A Teia”, que está no ar, tem dez capítulos. Para comparar, “A Grande Família”, um dos produtos tradicionais da Globo, tem 46 capítulos por ano. “A cada três meses queremos ter algo novo na programação”, diz Schroder. A série “O Caçador”, com o ator Cauã Reymond, tem estreia prevista para abril.

Estabelecer a programação é um trabalho meticuloso, que envolve detalhes sobre os quais espectadores nem imaginam. “Joia Rara”, a novela das seis, precisou ser planejada de maneira a aproveitar o período mais adequado para viajar ao Nepal, onde se passa parte da história. Entre as produções que estão por vir há uma novela com locações no Ártico e uma série na Amazônia, outros locais de acesso restrito. No caso da série, prevista para 2015, as gravações têm de ser feitas em julho ou janeiro, quando dá para subir o rio Amazonas.

A Copa deste ano complica ainda mais as coisas. Diferentemente do que seria de imaginar, cobrir os jogos no Brasil vai sair mais caro que as transmissões a partir do exterior, porque o espectador brasileiro espera uma cobertura mais detalhada e exclusiva. A Rede Globo vai destacar 50 equipes para cobrir o torneio. E como é a Fifa que escolhe os horários dos jogos, será preciso fazer adaptações o tempo todo. “Em um dia pode não ter uma novela ou outra, no outro o ‘Jornal Nacional’ pode entrar mais tarde”, diz Schroder. “A programação será totalmente dedicada aos jogos.”

A Globo vendeu oito cotas de patrocínio da Copa, cada uma delas de R$ 179,8 milhões. As cotas foram oferecidas em maio, cumprindo exigência da Fifa, que dava prioridade de dez semanas aos patrocinadores da organização. Em agosto, todas estavam vendidas. As seis cotas do Projeto Futebol 2014 (85 partidas de torneios nacionais e internacionais), de R$ 185,4 milhões cada uma, foram renovadas em menos de três semanas.

Para dar conta do trabalho, Schroder, morador de Ipanema, acorda cedo. Já está de pé por volta das 6 horas. Ele lê os jornais e vai fazer exercícios – pilates, corrida e tênis, em dias alternados. Depois, segue para a Globo. Dois dias por semana vai para o Jardim Botânico (onde estão o departamento de jornalismo e as áreas administrativas), dois dias segue para o Projac e um dia, a sexta-feira, passa em São Paulo. Sai de casa às 8h30. A agenda começa para valer às 9h30, 10 horas. Mesmo quando vai ao Projac, costuma usar o carro. “Às vezes, venho de helicóptero”, conta. Os fins de semana são na serra de Petrópolis. O acordo é só ser chamado em situações urgentes. Mas o que é urgente? Difícil classificar em uma emissora de TV, mas ele diz que raramente é chamado. Bem diferente dos tempos em que era diretor de jornalismo, quando estava sempre acompanhando o noticiário.

Coração da máquina

Schroder prefere ler jornal em papel, mas não é resistente à tecnologia. Nem poderia ser. A internet é um passo inevitável na missão de modernizar a TV Globo. No mês passado, a empresa lançou o Gshow, seu portal de entretenimento. Com isso, completa uma estrutura que já contava com o G1, de notícias, e o Globoesporte.com, de esportes. O portal Globo.com, explica o executivo, tem um perfil diferente: reúne conteúdo de todas as empresas da Globo e não só da TV aberta.

Em seus primeiros 15 dias, o Gshow contabilizou uma audiência média de 6,2 milhões de visitas por dia, segundo contagem do Google Analytics. No mesmo período, o G1 recebeu 6,5 milhões de visitas e o Globoesporte.com, 7,5 milhões. A audiência é um dado relevante, mas o Gshow também é importante porque abre um espaço adicional de experimentação, com a possibilidade de criar conteúdo original, em vez de apenas repetir a programação da TV.

É o caso das webséries, feitas especificamente para a internet. “Atormentados”, sobre um grupo de atores em um teste de elenco, e “A Lei de Murphy”, sobre o dia a dia em um escritório, foram as primeiras a estrear. Depois, foi a vez de “Histórias de Amor à Vida”, na qual pessoas reais contam dramas pessoais e familiares.

Em Belo Horizonte, a emissora testa o Globo TV Mais. A proposta é permitir que o espectador tenha acesso a qualquer conteúdo próprio da emissora – filmes não estão incluídos, por exemplo – no dispositivo que quiser, como tablets e smartphones. A defasagem em relação à transmissão ao vivo é de cerca de uma hora no caso dos telejornais, porque o conteúdo é perecível, e de três horas e meia na dramaturgia.

A Globo também testa o modelo da segunda tela. O conceito visa criar extensões da programação principal, exibida na TV, em outros meios, de caráter mais interativo. Os testes feitos até agora incluem um aplicativo para o programa musical “The Voice” – amigos podiam apostar entre si para saber se os técnicos virariam ou não para os candidatos – e experiências envolvendo o “Big Brother Brasil” e a novela juvenil “Malhação”. A previsão é que algo mais concreto esteja disponível até o fim do trimestre.

A internet trouxe uma série de competidores à TV aberta, desde o YouTube, o site de compartilhamento de vídeo povoado de produções caseiras, até o Netflix, cujo serviço sob demanda permite ao assinante ver filmes e séries em telas variadas. Nos últimos anos, a TV aberta também ganhou a competição de outras formas de entretenimento digital, como os jogos de videogame e as redes sociais. Schroder está atento a esse movimento – tanto que estabeleceu uma diretoria comercial exclusiva para a mídia digital –, mas recomenda cuidado ao examinar a queda de audiência da TV aberta no país.

“Fala-se que a novela dava 50 pontos de audiência há dez anos e hoje rende 40 pontos, mas em valores absolutos o número é maior”, afirma o executivo. A população brasileira cresceu, assim como o número de residências com aparelhos de TV. O cálculo é que a média de aparelhos de TV em cada lar brasileiro quase dobrou em relação a 20 anos atrás. Os 30 pontos da Globo em 1997, quando começou a medição nacional, equivaliam a 10.106.038 de domicílios com TV. No ano passado, os mesmos 30 pontos correspondiam 17.921.371 domicílios, um aumento de 71,4%. “A TV aberta ainda tem uma força gigantesca”, diz.

Segundo dados do Ibope, a Globo detém uma audiência média de 15,8 pontos no país no horário das 7 às 24 horas, o equivalente a uma participação de 44%. Entre 18 e 24 horas, o desempenho é superior: 24,9 pontos e 52% de participação, com base na medição de janeiro. Record e SBT vêm em seguida – com 4,6 pontos e 13% de participação e 4,4 pontos e 12% de participação, respectivamente, das 7 às 24 horas. Mas o quadro mostra uma curiosidade. Quem mais se aproxima da Globo, na prática, são os chamados outros canais, com 8,3 pontos e 23% de participação. Basicamente, são os canais de TV paga, que isoladamente respondem por uma audiência pequena, mas em grupo já constituem a vice-liderança.

Atenta às oportunidades, a Globo decidiu começar a produzir para a TV fechada. A primeira coprodução com a Globosat, programadora de TV paga das Organizações Globo, será “Animal”, um seriado de mistério. Com o acordo, a emissora ganha a possibilidade de reutilizar um produto exibido – e testado – na TV por assinatura. Esse tipo de troca já rendeu resultados anteriormente, mesmo sem coprodução. No ano passado, quatro episódios inéditos do humorístico “Sai de Baixo” que haviam sido encomendados pelo canal Viva, de reprises, foram exibidos na Globo, depois da aceitação na TV paga.

“Animal” será desenvolvida por uma produtora independente, a Accorde Produções. “Vamos fazer dois ou três produtos por ano [em coprodução para a TV paga], sempre com terceiros”, diz Schroder. “Nossa capacidade própria de produção está no limite.”

O movimento incessante no Projac (de Projeto Jacarepaguá) é um indício do ritmo de trabalho na Globo. Por dia, 7 mil pessoas passam pelo centro de produção, que abriga vários estúdios e uma cidade cenográfica em 1,65 milhão de metros quadrados. Desse total, 1 milhão de metros são cobertos por uma área verde preservada. Com as instalações ocupadas, a saída é encontrar outros lugares para algumas atrações. “A Mulher do Prefeito”, uma coprodução com a O2, foi feita em São Paulo. O humorístico “Divertics” está sendo gravado no Polo de Cinema e Vídeo, também em Jacarepaguá.

O Projac funciona como o coração de uma máquina que produz mais de 2,5 mil horas de conteúdo por ano. Passear pelo local lembra a sensação de estar em um parque temático. As montanhas da Capadócia, cenário da novela “Salve Jorge”, ficam ao lado da vila rústica de “Flor do Caribe”. Você pode cruzar com Perséfone (na verdade, a atriz Fabiana Karla) na porta do hospital San Magno, da recém-encerrada novela “Amor à Vida”, ou ver o vilão Manfred (o ator Carmo Dalla Vecchia) sorrir amavelmente para você enquanto cruza uma rua saída dos anos 30 e 40, a época em que se passa a trama de “Joia Rara”.

Sem garantias

Ao todo, a Globo tem cerca de 12 mil funcionários, sem contar o pessoal de empresas que trabalham para a emissora, um contingente aproximado de mais 10 mil pessoas. A diversidade dos profissionais, obviamente, é enorme. Vindo do jornalismo, Schroder precisou aprender a conviver com artistas, diretores e escritores, entre outros profissionais que representam a face mais visível da Globo.

– É difícil conviver com o ego de profissionais famosos?

Schroder sorri e conta como se aproximou do seu time de estrelas. Desde que assumiu a direção, ele vem montando fóruns por gênero – um de escritores, outro de humoristas etc. A ideia, explica, não é discutir se um programa vai bem ou mal, mas qual deve ser o futuro da área. “É sobre como chegar a um nível internacional de qualidade, a ponto de disputar um prêmio”, afirma. A Globo tem marcado presença no exterior. Fernanda Montenegro, cuja humildade ele elogia, venceu o Emmy de melhor atriz no ano passado, e o “Jornal Nacional”, que já foi finalista nove vezes, levou o troféu em 2011.

O executivo também tem marcado conversas individuais com os profissionais de primeiro time. Escritores, diretores de núcleo e elenco principal estão recebendo convite para conversar em sua sala. “A palavra que eu prezo é diálogo”, afirma Schroder. Ele sabe que há um limite para o processo coletivo. Em algum momento, os responsáveis por um determinado projeto têm de tomar uma decisão entre as várias possibilidades colocadas à mesa. “Mas ouvir [o que os demais envolvidos têm a dizer] passou a ser uma obrigação.”

Não existe garantia de que o público vá gostar de todas as mudanças em curso. O importante, diz Schroder, é ter uma programação viva, que se renove antes que um determinado programa chegue a seu limite. “Não dá para ficar imobilizado.” De todos os riscos relacionados à mudança, talvez o pior seja deixá-la para fazer quando for tarde demais.

******

Heloisa Magalhães e João Luiz Rosa, do Valor Econômico