Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Barbárie

Assisti à imagem do rapaz espancado e acorrentado ao poste após cometer assaltos na praia do Flamengo, no Rio de Janeiro. Também vi a apresentadora de televisão se complicar ao dizer o que muita gente queria dizer, vi o caos das prisões, a ineficácia e o silêncio criminoso da justiça, a soberba e ousadia dos marginais. Um vídeo mostra um cinegrafista agredindo um rapaz, golpeando-lhe a cabeça com a filmadora, pois este lhe teria dito: “Você será o próximo”, referindo-se ao colega morto pela explosão de um rojão. Entusiasmado, o locutor do jornal-desgraça disparava, com sua fala embriagada, justificativas para a reação do cinegrafista. Será que um professor, um médico, um pai ou um policial também poderão justificar seus erros pelo fato de estarem emocionalmente afetados?

Mais do que o mal-estar gerado pelas cenas, causam espanto e desesperança as manifestações favoráveis ou contrárias. De cada lado dos extremos, impressões e diagnósticos tão ligeiros quanto perigosamente superficiais. E o pior, legitimadores de atos que só sabemos como começam. Para alguns, muito fácil reconhecer a presença do monstro ali acorrentado; para outros, a silhueta assombrosa recaindo sobre aqueles que o torturavam. E nós, na plateia real ou virtual, saboreando a impagável mistura de repugnância e prazer, além da satisfação inconfessável de dever cumprido. Afinal, se ninguém faz nada, vamos corrigir este mundo torto na porrada! Num delírio, a brisa fresca da cidade que insiste em ser maravilhosa dá lugar à atmosfera úmida e sombria de um coliseu; as feras todas igualadas em sua inumanidade.

Por este início de conversa, imagino haver gente querendo me ver ao lado do meliante, atado ao poste, ouvindo frases prontas: “Leva ele pra sua casa”, “Tá com dó, chama ele pra uma conversa”, “Ele vai meter uma bala em você”, entre outras. Sei que me arrisco a ficar mal com uma ou outra torcida (des)organizada. No entanto, não acredito estarmos em lados opostos. Na verdade, estamos todos perdidos, atordoados, amedrontados, com a terrível sensação de abandono, de impotência.

Doença grave

Há muito, nossa sociedade vem flertando vergonhosamente com o crime, a impunidade, a corrupção, as drogas, a vadiagem. Mais do que isso, assistimos calados ao esfacelamento da estrutura que nos deveria proteger. Após mais de 30 anos de alforria democrática e da redentora Constituição de 1988, ainda agimos como adolescentes perdidamente lambuzados em sua liberdade. Queremos todos os direitos, nenhuma responsabilidade e, se possível, nada que possa balizar, regrar, ordenar ou mesmo limitar nossas vontades e impulsos, ainda que por um bem maior. Livres e inconsequentes, damos birra, ameaçamos a professora, cuspimos na polícia, depredamos o público e o privado, queimamos ônibus, soltamos rojões. E ainda sempre há alguém nos tratando como vítimas, crianças indefesas ou cidadãos aleijados.

Sim, precisamos fazer algo urgente; só não acredito que o caminho seja a justiça das ruas, as condenações sumárias, as punições imediatas e irrefletidas. Só consigo ver a barbárie como sintoma de uma gravíssima doença, não como o princípio de sua cura. Por fim, não imagino que noruegueses, suecos e canadenses sintam inveja ou arrependimento por não terem apostado nos caminhos do talibã, do código de Hamurabi ou da lei de talião. Quero sonhar com um país diferente, onde o medo deixe de ameaçar a esperança.

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Thogo Lemos é médico, Uberlândia, MG