The Gang’s All Here, de 1943, do cineasta Busby Berkeley, é uma referência escandalosa de invenção de uma terra exótica consolidando um erotismo implícito na feminidade latina, combananas com quase dois metros e morangos gigantes que ostentam de forma fálica uma “passarela de desejos” (expressão de Baxter Philips), como observou Theodoro Robert Young, da universidade da Flórida. O clima tropical e mulheres sensuais embalam a plasticidade do sonho erótico internacional produzido pelo cinema hollywoodiano, com a grande estrela luso-brasileira Carmem Miranda.
Não seriaesse esteriótipo que alimenta ainda o imaginário de muitos estrangeiros que vêm ao Brasil? Uma publicidade de um clube de striptease cai como uma luva nesse imaginário. O problema é quando essa fantasia acontece num casamente promíscuo entre jornalismo e setor comercial de um jornal.
Ao veicular, na terça-feira (18/2), anúncio de casa de shows eróticos de Florianópolis na contracapa inteira de um caderno especial sobre o início do Congresso Técnico da Fifa, com representantes das 32 seleções que participam da Copa de 2014, o Diário Catarinense (DC), da RBS, afiliada à Rede Globo, passou a ser alvo de críticas nas redes sociais, de que a propaganda reforça o turismo sexual no Brasil. Distribuído no Costão do Santinho, o material deseja boas vindas em três línguas e oferece um roteiro para conhecer a capital, patrocinado pelo Bokarra Club.
O gênero é uma invenção
“Não se nasce mulher, torna-se mulher.” A afirmação de Simone de Beauvoir já se tornou senso comum. Mas a ideia central não perde sua potência, a de que “nunca se pode tornar-se mulher em definitivo”, como observou Judith Butler. Não há dúvidas de que as discussões de gênero marcaram o pensamento nas ciências humanas no século 20, sobretudo no debate de desconstrução do sujeito, opondo-se, principalmente, ao sentido de identidade que, em sua performance mais acirrada e intolerante, leva ao machismo, ao racismo, à xenofobia etc.
Certos de que a identidade sexual é uma invenção, talvez devêssemos pensar como Foucault que a sexualidade é um dispositivo histórico de disciplina do corpo e da alma. Não é difícil aceitar a ideia de que os discursos sobre a sexualidade funcionam como reguladores. No caso da publicidade em questão, reguladores de estereótipos. Ora, quando o jornal catarinense produz o caderno especial com a publicidade do Bokarra, é a frase, em três idiomas, abaixo da imagem de cinco mulheres exibindo suas bundas e, ao fundo, o cartão postal da capital, a Ponte Hercílio Luz, que convoca os gringos ao turismo: “O melhor clube de striptease de Florianópolis”. A frase neste contexto regula bem o sentido do que é ser mulher e homem no imperativo do consumo – ambos como objeto do próprio capitalismo.
A identidade como invenção serve para entender, também, como o sentido machista é cristalizado e, neste caso, como o estereótipo da mulher brasileira é alimentado no próprio país. Entender a sexualidade como uma invenção não é somente como teoria revolucionária enquanto devir, no sentido deleuziano, de traçar novas linhas de subjetivação que são sempre menores em relação a uma posição dominante. Os sentidos dominantes que perduram mais na história são sempre as maiores invenções, as que mais capturam nossos desejos.
Veículos como dispositivos
O filósofo esloveno Slavoj Žižek percebeu bem um ponto de aproximação entre Louis Althusser (Aparelhos Ideológicos do Estado), Jacques Lacan (O grande Outro) e Michel Foucault (dispositivo), que trabalham com conceitos que buscam dar conta dos processos de captura do sujeito. Em Menos que Nada, publicado no Brasil no ano passado pela Boitempo, Žižek persiste num ponto que aparece em suas outras obras: o de mostrar que se há uma tradição na filosofia contemporânea (entendendo do século 20 em diante) de negar Hegel (neste caso não inclui Lacan), esta negação se dá pela presença constante, como um fantasma que não para de assombrar. Nessa lógica deveríamos inverter o subtítulo de Menos que Nada, de ‘Hegel e a sombra do materialismo dialético’ para ‘Materialismo dialético e a sombra de Hegel’. E o projeto de Žižek é ousado, ao inserir no debate autores que negam o próprio materialismo, como Foucault e Deleuze.
Mas é em Giogio Agamben, no pequeno texto “O que é um dispositivo”, que integra o livro O que é ser contemporâneo? E outros ensaios, publicado pela Argos, em 2009, que o filósofo italiano generaliza o conceito foucaultiano e o insere num novo contexto, criando duas grandes categoria: “de um lado os seres viventes (ou as substâncias) e de outro os dispositivos nos quais estes estão incessantemente capturados” (p. 40). A diferença em relação a Foucault é simples: não há espaço para liberdade. No fundo, Agamben rejeita a noção de práticas de liberdade, desenvolvida por Foucault, levando os dispositivos às suas últimas consequências, de governar por completo o reino das substâncias.
Talvez o ponto importante na percepção de Agamben, e que nos interessa, é que o termo dispositivo vem do latim dispositif cuja origem está ligada a “toda a complexa esfera semântica da oikonomia teológica”, ou seja, o termo se origina no início da cristandade e diz respeito, como observou Žižek relendoAgamben, “não só a Deus em si, mas à relação de Deus com o mundo, ao modo como Deus administra seu reino” (p. 621).
A relação do conceito com a cristandade parece oportuna, uma vez que o pecado original foi cometido, primeiramente, por Eva, que comeu o fruto proibido. Não é por acaso que as discussões de gênero, que nascem do movimento feminista, causam tanta potência, pois o fruto proibido nada mais é do que o conhecimento, mas não o conhecimento sobre as essências, e sim, sobre as aparências, visto que a essência é projeção da aparência e por isso invenção. A invenção aqui pode seguir a lógica da profanação de Agamben, como “daquilo que, de sagrado ou religioso que era, é restituído ao uso e à propriedade dos homens” (p. 45).
No entanto, a ideia importante é que a noção de dispositivo está relacionada a administrar, disciplinar, controlar. É por isso que Foucault faz uma arqui-genealogia da modernidade a partir dos seus dispositivos disciplinares, como o panóptico do utilitarista inglês do século 19, Juremy Bentlam. O olho que tudo vê é, também, o olho da nossa consciência, uma espécie de autogoverno, pois quem governa é sempre o outro por meio dos dispositivos. Nesse ponto, a noção em Agamben parece demonstrar melhor, ao observar para além das instituições e discursos, como os dispositivos capturam os desejos numa relação de poder de assujeitamento. A hipótese mais radical que fica em aberto em Agamben é se haveria vida para além dos dispositivos.
Se concordamos com essa tese, o sentido que gerou a polêmica com a publicidade no encarte do DC foi uma dispersão do dispositivo, uma falha da maquinaria disciplinar em relação à forma como deveríamos significar esse anúncio na edição do jornal. Aqui estaríamos profanando (com “perdão” pela reaproximação do termo) a própria maquinaria capitalística (Guattari), o que não significa que os sentidos que geraram a polêmica não estejam em outra ordem de discurso, capturados por outros dispositivos.
É nesse ponto que a falha não pode ser entendida simplesmente como ruído na comunicação, mas como algo que não foi coberto pelo campo simbólico. Em bom lacanês, a falha estaria relacionada ao Outro, ao desejo do Outro que falha, e, por isso, se constitui como não-todo. Pode parecer complicado, mas é simples. O não-todo, sem entrar diretamente na teoria da sexualidade, é como o par na relação heterossexual nos nossos dias – nunca se sentiu tão ameaçado. Não é à toa que a publicidade no DC causou tanta polêmica, desde os comentários moralistas aos que defendem os direitos humanos.
“Menos que nada”
O título do livro de Žižek parece entrar bem nesta polêmica fálica. Caminhando para o final de sua extensiva obra Menos que nada, Žižek nos diz que “de maneira surpreendente (ou talvez não) encontramos uma lógica similar do ‘mais por menos’ no universo consumista das mercadorias, em que o ‘menos’ é o proverbial centavo subtraído do preço cheio (4,99 e não 5), e o ‘mais’ é o proverbial centavo excedente que levamos de graça, conhecido de todos que compram creme dental: um quarto de embalagem é em geral de cor diferente, e letras garrafais anunciam: Grátis um terço a mais”. A lógica caberia bem nessa relação jornalismo e publicidade no dispositivo veículo de comunicação, em que a notícia está cada vez mais espremida entre as imagens (como diria Barthes, “o texto constitui uma mensagem parasita destinada a conotar a imagem”) e os anúncios.
O texto, quase reduzido ao lead, torna-se mais atraente, enquanto a publicidade é o excedente no jornal para o leitor e que vem como algo grátis que torna o produto mais barato. Nesse caso, o excedente foi a imagem da bunda das cinco mulheres que poderiam cair no colo dos gringos, como numa transmutação cristão, em que o pão se transforma em corpo.
O leitor como mercadoria
Outra forma de encarar o problema é perguntando o que as empresas querem? A lógica é óbvia. O raciocínio, numa rápida formulação, pode parecer meio mecânico se comparado com a plasticidade das discussões mais elaborados de gênero. Pode até parecer um modelo já arcaico para muitos, mas funciona.
Os veículos de comunicação são empresas e, acima de tudo, está o desejo (pervertido) de obter lucro. Mulher é entendida como mercadoria, mas leitores também o são. O que define o valor de um anúncio é o número de assinantes e de vendas do jornal nas bancas (há também o capital simbólico de toda uma articulação política dentro do campo). Quer dizer que nós somos o medidor do valor cobrado pelo anúncio que faz das bundas das mulheres, na propaganda, um objeto de desejo, de tal forma que nos tornamos também um objeto na relação, já que o anúncio é destinado aos consumidores (nós próprios que regulamos o valor do anúncio).
Nesse caso, inclui, também, outros possíveis consumidores, visto que o encarte foi endereçado, pelo que parece, aos estrangeiros que estavam na capital por ocasião do Congresso Técnico da Fifa. Não é de se estranhar essa exposição sexual que apimenta a polêmica. Ao invés da polêmica girar em torno de valores morais ou dos direitos humanos, a luta poderia ser pela democratização dos meios de comunicação, a quebra de monopólios, contra os conglomerados e pela politização da vida. A verdade na imprensa também é comprada e colocada à venda. Talvez seja essa a grande fantasia da nossa realidade, o que não deixa de ser a maior de todas as prostituições.
Pedido de desculpas
Com a polêmica que circulou pelas redes sociais da internet, o DC, em nota, fez um pedido de desculpas para seus leitores. Contudo, o reconhecimento da falha é como a tentativa de cobrir algo que fugiu do controle. A falha é sempre a fuga, o que mais deve ser exaltado em uma análise. Talvez, o que faz falhar um dispositivo não seja o desejo pervertido do Outro, mas o desejo incessante de escapar de sua captura.
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José Isaías Venera é jornalista, com formação em psicanálise, e professor universitário