Cora Ronai, no seu artigo “Decepção virtual“, publicado em 13/02/2014 no jornal O Globo, capta muito bem o espanto de muitos de nós ao depararmos com uma faceta até então desconhecida de um amigo ou amiga que está a vociferar nas mídias sociais. Amigos e conhecidos que passavam uma imagem civilizada, de repente aparecem encampando um discurso dos mais reacionários e odiosos. Daí o despreparo revelado pela articulista e por muitos de nós, creio, para conhecer verdadeiramente as pessoas de nosso circulo de amizade.
Esta nova imagem surpreende porque destoa da até então conhecida. Com o tempo, ela vai tomando corpo, se agigantando, substituindo a do, até então, companheiro cordial e afável conhecido. É a decepção e repulsa sentida por qualquer um mais civilizado e tolerante ao se deparar com a truculência e intolerância do amigo que vê quem discorda como inimigo. Vai além, portanto, do fato dele pensar diferente. Causa mal estar pela agressividade e contundência até quando há concordância em alguma questão pontual. Afinal, quem é realmente tolerante deve respeitar pensamentos discordantes e se sentir, no mínimo, desconfortável quando percebe pensamentos beirando o fascismo.
O mesmo não acontece, suponho, no âmbito familiar porque as reuniões de família são palcos de um grau de intimidade maior que permite a revelação deste lado mais dark das pessoas. Ninguém vai se surpreender com o tio conservador, com o vovô reacionário, com o sobrinho nazista. Até porque já viu alguns destes defendendo raivosamente este ou aquele ponto de vista contra a política e os políticos, contra o Estado e contra os defensores dos direitos humanos, esta corja de defensores de bandidos.
Antigo privilégio
Por igual, sintetiza com exatidão, através da frase “Tá, o cinegrafista morreu, mas – e a violência da polícia?”, o mantra de uma parte, cada vez menor, felizmente, da esquerda que tenta assim desqualificar e minimizar a crítica ao modus operandi violento e niilista de grupos como o black bloc. Mesmo assim acredito que a morte de Santiago Andrade foi uma tragédia, não foi um cálculo político de jovens terroristas. Quanto à responsabilidade sobre o ocorrido, são “outros quinhentos”, isto é, cabe uma investigação isenta, diferente da que está em curso e que tem como protagonista um advogado Jonas Tadeu com antecedentes envolvendo a defesa de Natalino Guimarães, chefe de milícia alvo de uma CPI da Assembleia Legislativa do Rio e atritos, justamente por isso, com o deputado Marcelo Freixo, principal nome desta CPI.
Diante deste quadro degradado, ocorreu-me de lembrar que hoje em dia, mais do que antes, o discurso do senso comum conservador é constituído pelo que leram, ouviram e, principalmente, viram na chamada grande mídia. Um senso comum conservador, burguês, a bem da verdade, existe desde sempre. A diferença hoje é a sua migração para o espaço público da internet, como captou Sylvia Moretzsohn, professora de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense e articulista do Observatório da Imprensa em artigo na revista CartaCapital (768, de 2/10/2013), quando diz “veem- se em geral a cristalização de opiniões, a rejeição ao contraditório e a reprodução de certos clichês que apaziguam a consciência que tem convicções e que não estão abertos ao debate. Mas esse é também o comportamento normal do senso comum e não é surpresa que ele se reproduza nas mídias sociais”.
Outra diferença importante é que antes da internet escrever em espaço público e ser lido por outros que não os amigos e parentes mais próximos era privilégio de poucos e arrisco a dizer que a maioria das pessoas tinha, acreditem, medo do ridículo de expor limitações culturais e/ou no trato com a palavra escrita.
Maniqueísta e imutável
Em face deste papel relevante que a grande mídia, inegavelmente, ainda tem – mesmo que a cada dia que passa esteja sendo solapado este monopólio da informação e da formação de opinião no âmbito jornalístico que existia antes do advento da internet –, ela passa a ser responsável por parte importante deste estado de coisas ao, por exemplo, contratar brucutus ideológicos, como Reinaldo Azevedo e o Lobão, que não são, aqui e em lugar nenhum, exemplos de equilíbrio e racionalidade – ao contrário, seus escritos exalam ódio ao que pensa diferente e representam um Brasil assustado que busca instalar um clima de reação na classe média capaz de inviabilizar qualquer avanço social. Um estilo extemporâneo, udenista que, como já disse em outro artigo neste mesmo Observatório da Imprensa, congelou no tempo da guerra fria. Também, deve-se considerar que não fica circunscrito apenas a este tipo de jornalismo agressivo de baixo nível, a responsabilidade por fomentar e reproduzir um pensamento conservador, não- civilizado.
Com outro formato mais comportado, mas não menos comprometido com os interesses da “casa grande”, desfilam diariamente matérias e editoriais com críticas duras ao programa Bolsa Família, ao programa Mais Médicos, ao Estado, enfim, que seria melhor gerido se todas as suas funções fossem passadas à iniciativa privada, ao discurso alarmista apontando o risco da volta da inflação a todo o momento que o governo ousa diminuir juros que fazem a alegria dos rentistas e a tristeza do resto da população que, infelizmente, na sua maior parte, não percebe que ali está a explicação para grande parte não só dos altos impostos pagos pela sociedade, em particular, pelos mais pobres, tanto por meio de elevados tributos incidentes sobre tudo o que consomem, como pela ausência ou insuficiência de serviços públicos a que tem direito – saúde, educação, assistência social, previdência, segurança, vide artigo sobre o livro Auditoria Cidadã da Dívida: Experiências e Métodos, de Maria Lúcia Fattorelli, imagens que desfilam a toda hora na televisão demonstrando o caos que significou o advento da nova classe média, enfim, a tudo que signifique perda de privilégios de uma elite temerosa dos avanços sociais e políticos promovidos nos últimos 10 anos.
Ataques estes perpetrados por âncoras que tentam passar a imagem de isenção e neutralidade jornalística para melhor defender interesses patronais, mas que, às vezes, são flagrados em momentos que fogem do script revelando preconceitos de classe social, como no caso de Boris Casoy debochando dos garis ou a estudada programação, uma agenda oculta, feita, como disse William Bonner, sob medida para gente ingênua e pouco ilustrada tipo Homer Simpson. Portanto, gente simplória com dificuldade para entender coisas mais complexas e que, a julgar pelo teor conservador e maniqueísta imutável do Jornal Nacional e de todos os demais jornais impressos e televisivos da chamada grande mídia, deve continuar assim.
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Jorge Alberto Benitz é engenheiro e consultor, Porto Alegre, RS